APOFTEGMAS DO ABADE MACÁRIO

1. A propósito de si mesmo, o Abade Macário contou o seguinte: «Quando eu era jovem e residia numa cela no Egito, apreenderam-me e fizeram-me clérigo na aldeia. Todavia, já que eu não queria aceitar o cargo, fugi para outro lugar; aí foi ter comigo um homem secular, piedoso, o qual tomava os produtos de meu trabalho manual e me servia. Ora aconteceu que uma virgem, tentada, caiu em fornicação na aldeia; e, como ela estivesse grávida, perguntaram-lhe quem era que a tornara tal. Ela respondeu: ‘O anacoreta’. Foram, então, buscar-me e levaram-me para a aldeia; aí penduraram-me ao pescoço marmitas escurecidas pela fumaça e asas de potes; assim me levaram a circular por todos os quarteirões da aldeia, espancando-me e dizendo : ‘Este monge corrompeu a nossa virgem; agarrai-o, agarrai-o’. E tanto me batiam que quase morri. Entrementes, aproximou-se um dos anciãos, que disse: ‘Até quando espancareis o monge estrangeiro?’ O homem referido, que me prestava serviço, seguia, cheio de vergonha atrás de mim, pois também a ele insultavam muito, dizendo: ‘Eis o anacoreta do qual davas testemunho; que fez?’ Em dado momento os pais da virgem disseram: ‘Não o soltaremos antes que dê a caução de que sustentará a jovem’. Então intimei isto ao meu servidor, o qual prestou a caução por mim. Assim voltei para minha cela, e dei ao servidor todos os cestinhos que eu tinha, dizendo-lhe: ‘Vende-os, e dá de comer à minha esposa’. A seguir, falei comigo mesmo: ‘Macário, eis que encontraste uma esposa; é preciso que trabalhes um pouco mais para sustentá-la’. Em conseqüência, eu trabalhava noite e dia, e mandava-lhe os lucros. Ora, quando chegou para a infeliz o tempo de dar à luz, ela passou muitos dias em dores para conseguir gerar. Perguntaram-lhe, pois: ‘Que significa isto?’ Ela respondeu: ‘Eu sei, pois caluniei o anacoreta e o acusei mentirosamente; não é ele que tem culpa, mas tal jovem’. Então meu servidor, alegre, veio ter comigo, comunicando: ‘A virgem não pôde dar à luz até confessar’: ‘O anacoreta não tem culpa, mas menti contra ele. Eis agora que a aldeia toda quer vir aqui com honrarias e pedir-te perdão’. Eu, ao ouvir isto, levantei-me e fugi aqui para a Cétia, a fim de que não me atribulassem os homens. Este é o motivo pelo qual vim para cá».

2. Certa vez Macário o Egípcio foi da Cétia à montanha da Nítria para participar da oblação do Abade Pambo. Pediram-lhe então os anciãos: «Dize uma palavra aos irmãos, ó Pai». Ele respondeu: «Eu ainda não me tornei monge, mas vi monges. Pois em dada ocasião, estando eu na Cétia sentado na cela, atormentaram-me os pensamentos sugerindo-me: ‘Vai para o deserto, e considera o que lá se te deparar’. Fiquei em luta com este pensamento durante cinco anos, dizendo-me: ‘Não seja ele inspirado pelo demônio’. Visto, porém, que o pensamento persistia, fui para o deserto; lá encontrei um lago com uma ilha no meio, aonde os animais do deserto iam beber. Entre os animais vi dois homens nus, o que fez estremecer meu corpo, pois julguei que fossem espíritos. Eles, porém, vendo-me atemorizado, disseram-me: ‘Não temas; também nós somos homens’. ‘Perguntei-lhes então: ‘Donde sois, e como viestes para este deserto?’ Responderam: ‘Somos de um cenóbio; combinamos vir juntos para cá, e eis quarenta anos que aqui estamos e um de nós é Egípcio, e outro Líbio’. A seguir, eles, por sua vez, me interrogaram: ‘Como está o mundo? Cai a água em seu tempo? Tem o mundo sua prosperidade habitual?’ Respondi-lhes: ‘Sim’. De novo interroguei-os: ‘Como posso tornar-me monge?’ Responderam-me: ‘Se alguém não renuncia a tudo que é do mundo, não se pode tornar monge’. ‘Repliquei: ‘Eu sou fraco, e não posso fazer o mesmo que vós’. Observaram eles: ‘Se não podes fazer o mesmo que nós, senta-te em tua cela, e chora os teus pecados’. Perguntei-lhes ainda: ‘Quando é inverno, não sentis frio? E, quando faz calor, não se queimam os vossos corpos?’ ‘Responderam: ‘Deus nos fez esta graça: nem sentimos frio no inverno, nem nos prejudica o calor no verão’. É por isto que vos disse que ainda não me tornei monge, mas vi monges. Perdoai-me, irmãos».

3. Quando o Abade Macário habitava o pleno deserto, levava absolutamente a sós vida anacorética, enquanto mais abaixo havia outro deserto, onde muitos irmãos habitavam. O ancião, que costumava observar a estrada, certa vez viu Satanás que se aproximava sob forma de homem, devendo passar por ele; aparecia trajando uma túnica de linho perpassada de furos, dos quais pendiam pequenos vasos. Perguntou-lhe então o ilustre ancião: «Aonde vais?» Respondeu: «Vou recordar alguma coisa aos irmãos». Continuou o ancião: «E por que levas esses frascozinhos?» Explicou aquele: «São iguarias que levo para os irmãos. ‘O ancião insistiu: «Isso tudo?» O outro afirmou: «Sim; se um não agradar a alguém, apresentar-lhe-ei outro; e, se também este não agradar, apresentarei um terceiro; finalmente, dentre todos ao menos um há de agradar». E, tendo dito isto, foi-se. O ancião ficou observando as estradas, até que de novo aquele voltou; ao vê-lo, Macário disse-lhe: «Salve!»Satanás perguntou: «Como me é possível salvar-me?» Disse o ancião: «Por que assim falas?» O outro explicou: «Porque todos foram cruéis para comigo, e ninguém me tolera». O ancião indagou: «Então não tens nenhum amigo lá?» Aquele disse: «Sim, tenho lá um monge amigo, e ao menos este me obedece; quando me vê, volta-se como vento». Prosseguiu o ancião: «E como se chama tal irmão?» Satanás respondeu: «Teopempto». E, dito isto, seguiu caminho. Então o Abade Macário levantou-se e foi ao deserto que estava mais abaixo. Quando soube da sua chegada, os irmãos tomaram palmas nas mãos e saíram ao seu encontro; a seguir, cada um pôs-se a fazer os preparativos, julgando que o ancião havia de se hospedar na sua cela. Macário, porém, procurava quem era na montanha o chamado Teopempto. Tendo-o encontrado, entrou na cela deste. Teopempto recebeu-o com júbilo, Quando estavam os dois a sós o ancião perguntou: «Como estás, irmão?» Aquele respondeu: «Bem, por tuas preces». O ancião continuou: «Os teus pensamentos não te atormentam?» O outro afirmou: «Em verdade estou bem», pois tinha vergonha de confessar. O ancião insistiu- «Eis há quantos anos levo vida ascética, sou honrado por todos; não obstante, mesmo a mim, ancião, atormenta o espírito da fornicação». Teopempto então confessou: «Crê, ó Abade, que também a mim». A seguir, o ancião pôs-se a alegar que ainda outros pensamentos o perseguiam, até conseguir que Teopempto confessasse o mesmo. Finalmente, perguntou-lhe Macário: «Como jejuas?» Aquele respondeu: «Até a nona hora». O ancião mandou: «Jejua até o pôr do sol; luta; recita de cor trechos do Evangelho e das outras Escrituras; e, se te sobrevier algum pensamento mau, nunca olhes para baixo, mas sempre para cima, e logo o Senhor te auxiliará. Tendo assim instruído o irmão, o Abade voltou para sua solidão. Ora eis que, quando estava a espreitar a estrada, viu mais uma vez aquele demônio; perguntou-lhe: «Aonde vais de novo?» Respondeu: «Lembrar alguma coisa aos irmãos». E continuou caminho. Quando voltou, o santo perguntou-lhe: «Como estão os irmãos?» Aquele disse: «Mal». O ancião indagou: «Por quê?» Respondeu: «São todos cruéis; e o maior mal é que também aquele que eu tinha como amigo obediente, mesmo esse, não sei como, se voltou; nem ele me obedece; ao contrário, tornou-se o mais cruel de todos; jurei por conseguinte, não andar mais por aqueles lugares senão após algum tempo». Dito isto, foi embora, deixando o ancião. E o santo entrou em sua cela.

4. O Abade Macário, o Grande, foi ter com o Abade na montanha. Tendo batido à porta, este veio-lhe ao encontro e perguntou: «Tu quem és?» Respondeu: «Sou Macário». Antão fechou a porta, deixando-o fora. Notando, porém, a paciência dele, abriu-lhe e disse-lhe com muita graça: «Há muito tempo desejava ver-te, pois ouvira falar de ti». Recebeu-o então hospitaleiramente, e restaurou-lhe as forças, pois estava muito cansado. Ao pôr do sol, o Abade Antão umedeceu para si algumas palmas; o Abade Macário disse: «Manda que também eu umedeça algumas palmas para mim». Aquele respondeu: «Umedece». Fez, então, um feixe grande, umedeceu-O; e ficaram os dois sentados desde o cair da noite, falando da salvação da alma e tecendo, de tal modo que a corda chegava a cair pela janela para dentro da gruta. De manhã, ao entrar, o Abade Antão viu a grande quantidade de cordame do Abade Macário e disse: «Muita força procede dessas mãos».

5. O Abade Macário dizia aos irmãos, a respeito da devastarão da Cétia: «Quando virdes uma cela construída perto do pântano, sabei que a sua devastação está próxima; quando virdes árvores, a devastação estará às portas; quando virdes meninos, tomai os vossos mantos e retirai-vos».

6. Disse também, para exortar os irmãos: «Aqui veio um menino possesso do demônio, com sua mãe. Ora o pequenino disse a esta: ‘Levanta-te, ó velha, vamo-nos daqui’. Ela respondeu: ‘Não posso andar’. A criança retrucou então: ‘Eu te carregarei’. Fiquei estupefato pela maldade do demônio, que os queria afugentar daqui».

7. Contava o Abade Sisoé: «Quando eu estava na Cétia com Macário, subimos sete nomes (NT: “Nomes” está em lugar de “homens” ou “irmãos”. Sete companheiros, pois, saíram com o Abade Macário) para fazer a messe com ele. E eis que diante de nós se achava uma viúva a colher espigas, a qual não cessava de chorar. Então o ancião chamou o proprietário do campo e disse-lhe: ‘Que tem esta velha, pois está sempre chorando?’ Aquele respondeu: ‘É que o marido dela tinha bens de outrem em depósito, e morreu repentinamente sem lhe dizer onde os pusera; agora o proprietário do depósito quer levar a ela e aos filhos como escravos’. O ancião falou: ‘Dize-lhe que venha ter conosco, onde estamos repousando por causa do calor’. Quando a mulher chegou, o ancião perguntou-lhe: ‘Por que estás assim sempre a chorar?’ Ela respondeu: ‘Meu marido morreu depois de ter aceito o depósito de alguém, e, ao morrer, não disse onde o colocara’. O ancião intimou-a: ‘Vem, mostra-me onde sepultaste teu marido’. E, tomando os irmãos consigo, seguiu a mulher. Chegando eles ao referido lugar, disse a ela o ancião: ‘Retira-te para tua casa’. A seguir, fizeram oração, e o ancião chamou o morto, dizendo. ‘Ó tal, onde colocaste o depósito alheio?’ Aquele respondeu: ‘Está escondido em minha casa, sob o pé da cama». O Abade concluiu: ‘Dorme de novo até o dia da ressurreição’. Vendo isto, os irmãos caíram de medo aos pés dele, o qual lhes disse ‘Não foi por causa de mim que isto aconteceu, pois nada sou; mas foi por causa da viúva e dos órfãos que Deus o fez. Isto é grandioso: Deus quer que a alma esteja sem pecado; e, se ela é tal, recebe tudo o que pede’. O Abade se foi, pois, e anunciou à viúva onde se achava o depósito. Esta o retirou, entregou-o ao dono, libertando assim os seus filhos». E todos os que ouviram isto, deram glória a Deus.

8. O Abade Pedro contou, a respeito de São Macário, que foi ter uma vez com um anacoreta e o encontrou doente; perguntou-lhe, então, o que queria comer, pois nada tinha em sua cela. Aquele respondeu: «Uma broinha de farinha». Em consequência, o corajoso Abade não hesitou em ir à cidade de Alexandria e satisfazer assim o doente. O admirável é que o feito a ninguém se tornou notório.

9. Referiu também que o Abade Macário vivia em simplicidade e inocência com todos os irmãos; alguns então perguntaram-lhe: «Por que te comportas assim?» Respondeu: «Doze anos servi ao meu Senhor para que me desse esta graça; e todos vós me aconselhais que a rejeite?»

10. Diziam do Abade Macário que, quando se permitia certo lazer em companhia dos irmãos, estabelecia para si o seguinte princípio «Se houver vinho, bebe por causa dos irmãos, e, em troca de um cálice de vinho, deixa de beber água durante o dia». Ora os irmãos ofereciam-lhe vinho para restaurar-lhe as forças. O ancião o aceitava com alegria para mortificar-se. O seu discípulo, porém, que sabia o que se dava, dizia aos irmãos: «Por amor do Senhor, não lhe ofereçais; senão, ele se macerará na cela». Informados disso, os irmãos não lhe ofereciam mais vinho.

11. Quando certa vez o Abade Macário se dirigia do pântano para a sua cela, carregando palmas, eis que lhe foi ao encontro na estrada o demônio, trazendo uma foice. Este quis espancá-lo, mas não teve vigor; disse-lhe então: «Procede muita força de ti, ó Macário, pois não te posso agredir. Eis que, tudo o que fazes, também eu o faço; tu jejuas, eu também; tu vigias de noite, eu também não durmo; há uma só coisa em que me vences». O Abade Macário perguntou: «Qual é?» Aquele respondeu: «A tua humildade; e é por causa desta que não te posso agredir».

12. Alguns dos Padres perguntaram ao Abade Macário: «Por que é que, quer comas, quer jejues, teu corpo é descarnado?» Respondeu o ancião: «O lenho que revira os gravetos em combustão, é todo consumido pelo fogo. Assim também se o homem purifica a sua mente pelo temor de Deus, o próprio temor de Deus consome o corpodele».

13. Em dada ocasião o Abade Macário foi da Cétia a Terenutim, e entrou no templo para dormir. Ora lá havia antigos esqueletos de pagãos, dos quais ele tomou um, colocando-o na cabeça como travesseiro. Os demônios, vendo a coragem do Abade, foram acometidos de inveja; e, querendo amedrontá-lo, puseram-se a chamar um nome de mulher, dizendo: «ó tal, vem conosco ao banho!» Outro demônio respondeu debaixo dele como que dentre os mortos: «Tenho um estrangeiro em cima de mim, e não posso ir». O ancião, porém, não se aterrou; ao contrário, com muita coragem batia o esqueleto dizendo: «Levanta-te, e vai para as trevas, se podes». Ao ouvir isto, os demônios clamaram em alta voz: «Tu nos venceste». E fugiram confusos.

14. A respeito do Abade Macário o Egipcio, narravam que, certa vez, se pôs em viagem a partir da Cétia, carregando cestos; cansou-se, porém, e sentou-se no caminho; a seguir, orou dizendo: «Deus, tu sabes que não tenho forças». E logo foi encontrado junto ao rio.

15. Havia no Egito alguém que tinha um filho paralítico. Levou-o à cela do Abade Macário, e, tendo deixado o menino em prantos à porta, retirou-se para longe. Ora o ancião, abaixando-se, viu a criança e perguntou-lhe: «Quem te trouxe cá?» Respondeu o menino: «Meu pai atirou-me aqui e foi-se embora». O Abade, então, mandou: «Levanta-te, e vai-te juntar a ele». E eis que o menino foi imediatamente curado, levantou-se e foi ter com o pai. Assim voltaram ambos para casa.

16. O Abade Macário o Grande dizia aos irmãos na Cétia, quando despedia a assembléia da igreja: «Fugi, irmãos». Um dos anciãos perguntou-lhes certa vez: «E para onde, além deste deserto, havemos de fugir?» Macário então colocou o dedo sobre a boca e disse: «Fugi isto». A seguir, entrou na cela, fechou a porta e sentou-se.

17. Disse o Abade Macário: «Se, ao repreender alguém, és movido à ira, satisfazes a própria paixão. Não é perdendo a ti mesmo que salvaras os outros».

18. O mesmo Abade Macário, estando no Egito, encontrou um homem que, acompanhado de jumento, roubava as coisas de que se servia o Abade. Este, então, como um estranho, colocou-se ao lado do ladrão; com ele pôs-se a carregar o jumento, e, com muita calma, despediu-se dele, dizendo «Nada trouxemos para este mundo; é evidente que também nada podemos levar (1Tm 6,7). O Senhor deu; como Ele quis, assim se fez. Bendito seja o Senhor em tudo» (Jó 1,21).

19. Alguns perguntaram ao Abade Macário: «Como devemos orar?» Respondeu o ancião: «Não é preciso falar muito, mas estender as mãos e dizer: «Senhor, como queres e como sabes, compadece – te», ou, se estiveres tentado: «Senhor, vem em meu socorro». Ele mesmo sabe o que convém, e usa de misericórdia conosco».

20. Disse o Abade Macário: «Se se tornarem a mesma coisa para ti o desprezo e o louvor, a pobreza e a riqueza, a carência e a abundância, não morreras. Pois é impossível que aquele que crê como deve e age com piedade, caia na impureza das paixões e no erro dos demônios».

21. Contavam o seguinte: «Dois irmãos na Cétia cairam em falta, e o Abade Macário, da cidade, os excomungou. Alguns foram então procurar o Abade Macário o Grande, Egípcio, e lhe referiram o que acontecera. Este respondeu: «Não são os irmãos que estão excomungados, mas Macário está excomungado». Macário, o Egípcio, amava o outro Macário. Ora este ouviu que fora excomungado por aquele ancião, e fugiu para o pântano. Aconteceu então que o Abade Macário o Grande, saindo, o encontrou todo mordido pelos mosquitos; disse-lhe: «Tu excomungaste os irmãos, e eis que eles tiveram que se retirar para a aldeia. Eu, porém, te excomunguei, e tu, como uma bela virgem, fugiste para cá como para a câmara interior. Ora eu chamei os irmãos, interroguei-os, e eles afirmaram que nada disso aconteceu. Cuida, pois, irmão, de que também tu não tenhas sido iludido pelos demônios (pois nada viste); antes, prostra-te pedindo perdão por tua culpa». O outro respondeu: «Se queres, dá-me uma penitência». Vendo, pois, o ancião a humildade dele, disse: «Vai, e jejua três semanas, comendo uma vez por semana». Com efeito, esta era a tarefa do Abade Macário o Grande em todo tempo: jejuar a semana inteira».

22. O Abade Moisés disse ao Abade Macário na Cétia: «Quero viver em paz, mas os irmãos não me deixam». Respondeu-lhe o Abade Macário; «Vejo que a tua natureza é delicada e que não podes repelir um irmão; mas, se queres viver em tranqüilidade, retira-te para o deserto a dentro em Petra, e lá encontrarás descanso». Aquele fez assim, e conseguiu repouso.

23. Um irmão chegou-se ao Abade Macário o Egípcio e pediu-lhe: «Abade, dize-me uma palavra pela qual eu seja salvo». Respondeu o ancião: «Vai para junto do túmulo e insulta os mortos». Ora o irmão se foi, injuriou e apedrejou; a seguir, voltou referindo o feito ao ancião. Este perguntou: «Nada te disseram?» Aquele respondeu: «Nada». O ancião continuou: «Volta lá amanhã e dize louvores a esses mortos». O irmão voltou, pois, e pronunciou louvores aos mortos, chamando-os Apóstolos, Santos e Justos. A seguir, regressou à cela do ancião e referiu: «Disse louvores». O Abade perguntou: «Nada te responderam?» O irmão negou «Nada». Aquele retomou: «Sabes quanto lhes disseste de injuriosos, sem que eles te tenham respondido, e quanto lhes disseste de injurioso, sem que eles te tenham respondido, e quanto lhes disseste de glorioso sem que te tenham falado; assim também tu, se queres ser salvo, torna-te morto; como os mortos, não consideres nem as injurias doshomens nem os seus louvores. Assim poderás ser salvo».

24. Quando uma vez o Abade Macário passava com irmãos por uma região do Egito, ouviu um menino que dizia a sua mãe: «Mãe, certo homem rico gosta de mim, e eu o odeio, ao passo que um pobre me odeia e eu o amo». Ao ouvir isto, o Abade Macário admirou-se. Perguntaram-lhe então os irmãos: «Que significa essa palavra, Pai, pois que te admiraste?» Respondeu-lhes o ancião: «Em verdade, Nosso Senhor é rico e nos ama, enquanto nós não o queremos ouvir. Ao contrário, nosso inimigo, o demônio, é pobre e nos odeia, enquanto nós amamos a sua impureza».

25. O Abade Poimém, com muitas lágrimas, pediu ao Abade Macário: «Dize-me uma palavra pela qual eu seja salvo». Respondeu o ancião: «O que procuras, já desapareceu dentre os monges».

26. Certa vez o Abade Macário foi ter com o Abade Antão e conversou com ele. Quando voltava para a Cétia, acorreram-lhe ao encontro os Padres. Estando todos em colóquio, disse o ancião: «Referi ao Abade Antão que não temos oblação em nossa região». Os Padres, porém, puseram-se a falar de outros assuntos, e não perguntaram a Macário qual fora a resposta do Abade Antão, nem
aquele a referiu. Com efeito, um dos Padres dizia o seguinte: «Quando os Padres vêem que os irmãos se esquecem de interrogar a respeito de coisas edificantes, julgam-se obrigados a encetar eles mesmos uma conversa edificante; se, porém, os irmãos não correspondem, não continuam tal assunto, para que não pareçam falar sem ter sido interrogados nem a sua conversa seja tida como ociosa».

27. O Abade Isaías pediu ao Abade Macário: «Dize-me uma palavra». O ancião respondeu: «Foge dos homens». O Abade Isaías continuou: «Que é fugir dos homens?» O ancião explicou: «É ficares sentado em tua cela e chorares os teus pecados».

28. O Abade Pafnúcio, o discípulo do Abade Macário, contou: «Roguei a meu Pai: ‘Dize-me uma palavra’. E ele respondeu: ‘Não faças mal a alguém, nem condenes quem quer que seja. Observa isto, e serás salvo’».

29. Disse o Abade Macário: «Não durmas na cela de um irmão que tem má fama».

30. Certa vez alguns irmãos foram ter com o Abade Macário na Cétia; não encontraram na cela dele senão água putrefeita. Disseram-lhe então: «Abade, vem para a aldeia, e nós te restauraremos as forças». O ancião respondeu: «Conheceis, irmãos, a padaria de um tal na aldeia?» Responderam-lhe: «Sim». Continuou o ancião: «Também eu a conheço. E conheceis o terreno de tal homem situado no lugar em que bate o rio?» Responderam-lhe: «Sim;>. E o ancião concluiu: «Também eu o conheço. Por conseguinte, quando quero, não preciso de vós, mas vou buscar para meu uso (o que quero)».

31. A respeito do Abade Macário contavam que, se um irmão o ia procurar com medo, como a célebre e santo ancião, ele nada dizia. Se, porém, um irmão lhe falava como que desprezando-o: «Abade, então quando eras condutor de camelos p roubavas sal para o vender, não te espancavam os guardas?», se alguém o interpelava assim, ele respondia com alegria a tudo que perguntasse.

32. Do Abade Macáno o Grande diziam que se tornou, como está escrito, Deus sobre a terra, pois, assim como Deus recobre o mundo, também o Abade Macário recobria as falhas, que ele via como se não visse, e que ele ouvia como se não ouvisse.

33. O Abade Bitímio referiu que o Abade Macário contava o seguinte: «Quando eu residia na Cétia, certa vez lá foram ter dois jovens estrangeiros, dos quais um tinha barba, e o outro um começo de barba. Chegaram-se a mim, perguntando: ‘Onde fica a cela do Abade Macário?’ Perguntei a meu turno: ‘Por que o procurais?’ Responderam: ‘Tendo ouvido falar dele e da Cétia, viemos vê-lo’. Declarou então: ‘Sou eu’ Eles caíram por terra, dizendo: ‘Queremos permanecer aqui’. Eu, vendo que eram delicados e como que afeitos à riqueza, respondi-lhes: ‘Não podeis ficar aqui’. O mais velho, porém, replicou: ‘Se não podemos ficar aqui, vamo-nos para outro lugar’. Disse então comigo mesmo: ‘Por que os hei de expulsar e escandalizar? A labuta os fará fugir por si mesmos’. Falei-lhes, pois: ‘Vinde, e fazei uma cela para vós, se podeis’. Responderam: ‘Mostra-nos um lugar, e nós a faremos’. O ancião deu-lhes um machado, uma sacola cheia de pão, e uma porção de sal; a seguir, mostrou-lhes uma rocha dura, dizendo: ‘Talhai a pedra aqui, ide buscar lenha no pântano e, quando tiverdes concluído o teto, morai aí’. — ‘Eu pensava, disse o ancião, que, à vista do trabalho, haviam de partir’. Eles, porém, ainda me perguntaram qual deveria ser a sua futura ocupação naquela morada. Respondi: ‘Tecer cordames’. E fui buscar palmas no pântano, mostrei-lhes como se começa a tecelagem e como se deve coser, acrescentando: ‘Fazei cestas, e entregai-as aos guardas, os quais vos trarão pães’. A seguir, retirei-me. Eles, então, com paciência fizeram tudo que lhes mandei; e não me vieram procurar durante três anos. Neste entretempo fiquei lutando com meus pensamentos e perguntando-me: ‘Que estarão fazendo, pois não voltaram para interrogar a respeito das suas idéias? Outros de longe vêm ter comigo; estes, porém, que habitam perto, não voltaram nem foram ter com outros; só vão à igreja, em silêncio, a fim de receber a oblação’. Orei então a Deus e jejuei uma semana, a fim de que me mostrasse o que eles faziam. Terminada a semana, levantei-me e fui ter com eles para ver como viviam. Bati à porta; eles abriram e saudaram-se em silêncio; fiz oração e sentei-me. Então o mais velho fez um sinal de cabeça ao mais novo para que saísse, e sentou-se para tecer corda sem dizer coisa nenhuma. À hora nona, ele fez um ruído; o mais jovem entrou, e, ao sinal do mais velho, preparou um pouco de mingau, pôs a mesa e sobre esta colocou três pães, deixando-se ficar em pé ao lado e taciturno. Eu disse, por conseguinte: ‘Levantai-vos, vamos comer’. Levantamo-nos, e comemos; depois o jovem trouxe a caneca e bebemos. Quando caiu o sol, perguntaram-me: ‘Vais embora?’ Respondi: ‘Não, mas dormirei aqui’. Eles então estenderam uma esteira para mim de um lado, e outra para si do outro lado, no canto; tiraram os seus cinturões e se deitaram juntos sobre a esteira diante de mim. Ora, quando já estavam deitados, roguei a Deus que me revelasse o que eles faziam. Abriu-se, então, o teto e desceu uma luz como que de dia; eles, porém, não viam a luz. E quando julgavam que eu estava dormindo, o mais velho cotovelou o lado do mais jovem; levantaram-se ambos, cingiram-se, e estenderam as mãos para o céu. Eu os considerava; eles, porém, não me perceberam. E vi os demônios que desciam como moscas sobre o mais moço; uns se pousavam sobre a boca dele, outros sobre os olhos; vi também um anjo do Senhor com uma espada de fogo na mão que protegia o jovem ao redor e dele afugentava os demônios. Quanto ao mais velho, porém, dele não se podiam aproximar. Ao despontar do dia, eles se deitaram de novo; eu fiz como se me estivesse despertando, e eles também. Então o mais velho me disse apenas estas palavras: ‘Queres que recitemos os doze salmos?’ Respondi: ‘Sim’. O mais novo, pois, cantou cinco salmos de seis versos, e um Aleluia; a cada verso, saía uma chama de fogo da boca dele, a qual subia para o céu. De forma semelhante, quando o mais velho abria a boca para salmodiar, desta saiam como que labaredas de fogo, as quais chegavam até o céu. Também eu recitei um pouco, de cor. Por fim, despedi-me, dizendo: ‘Rezai por mim’. Eles, porém, prostraram-se por terra, em silêncio. Assim fiquei sabendo que o mais velho era perfeito e que ao mais jovem o inimigo ainda perseguia. Poucos dias depois, o irmão mais velho faleceu, e, três dias mais tarde, o mais moço». Para o futuro, quando alguns dos Padres iam ter com o Abade Macário, este os levava à cela dos dois, dizendo-lhes: «Vinde, vede o martírio dos pequenos peregrinos».

34. Certa vez os anciãos da montanha mandaram pedir ao Abade Macário na Cétia: «Para que não se canse o povo todo indo ter contigo, rogamos-te que venhas a nós, de modo que te vejamos antes que emigres para junto do Senhor». Macário foi, pois, à montanha, e todo o povo se reuniu em torno dele. Os anciãos pediram-lhe que dissesse uma palavra aos irmãos; ao que ele respondeu: «Choremos, irmãos, e que os nossos olhos derramem lágrimas antes que nos vamos para aquele lugar em que as nossas lágrimas consumirão de fogo os nossos corpos». Puseram-se, então, todos a chorar, prostrados sobre a face, e disseram: «Pai, reza por nós».

35. De outra feita, um demônio apresentou-se ao Abade Macário com uma espadazinha, querendo amputar-lhe o pé; mas não o pôde por causa da humildade dele, e, em conseqüência, disse-lhe: «Tudo que vós tendes, também nós o temos; apenas pela humildade diferis de nós, e prevaleceis sobre nós.

36. Disse o Abade Macário: «Se guardamos a recordação dos males que nos são acarretados pelos homens, extinguimos a eficácia da recordação de Deus. Se, porém, conservamos a lembrança dos males causados pelos demônios, somos invulneráveis».

37. O Abade Pafnúcio, o discípulo do Abade Macário, referiu o seguinte dito deste ancião: «Quando eu era criança, apascentava bezerros com outros meninos. Certa vez estes foram roubar figos, e, quando corriam, caiu um figo, que eu recolhi e comi. Ao recordar-me disto, sento-me e ponho-me a chorar».

38. O Abade Macário referiu o seguinte: «Certa vez, quando eu andava pelo deserto, encontrei uma caveira no chão; empurrei-a com o meu bastão de palma, e a caveira me falou. Perguntei-lhe: ‘Tu quem és?’ Respondeu-me: ‘Eu era sumo sacerdote dos ídolos e dos pagãos que moravam neste lugar. Tu, porém, és Macário, o portador do Espírito. Na hora em que te compadeces dos que estão em penas e oras por eles, são um pouco aliviados’. O ancião perguntou então: ‘Qual é esse alívio e quais são as penas?” A caveira respondeu: ‘Quanto dista o céu da terra, tão intenso é o fogo que arde debaixo de nós, que, dos pés até a cabeça, estamos em meio ao fogo; e ninguém vê a outrem face a face; mas o rosto de um adere às costas de outro. Quando, pois, rezas por nós, acontece que um vê parte da face do outro. Este é o alívio’. Chorando, então, o ancião exclamou: ‘Ai do dia em que nasceu o homem!” E de novo perguntou à caveira: ‘Haverá outro tormento pior?’ Esta respondeu: ‘Há um tormento pior abaixo de nós’. O Abade indagou: ‘E quem são os que lá estão?’ A caveira continuou: ‘Nós, que não conhecemos a Deus, somos tratados ao menos com um pouco de misericórdia; aqueles, porém, que conheceram a Deus e O negaram, estão debaixo de nós’. Macário, então, tomou a caveira e a enterrou.

39. Do Abade Macário, o Egípcio, contavam que certa vez se dirigia da Cétia ao monte da Nítria. Quando se aproximou do termo da viagem, disse a seu discípulo: «Vai um pouco adiante». Ora, caminhando este à frente, encontrou-se com um sacerdote pagão, a quem interpelou, exclamando: «Ai de ti, ai de ti, demônio, para onde corres?» Este, voltando-se, espancou-o e deixou-o semimorto; a seguir, recolheu a lenha que carregava, e correu. Pouco adiante, quando corria, encontrou-se com o Abade Macário, o qual lhe disse: «Salve, salve, ó homem fatigado!» Aquele, admirado, aproximou-se e perguntou-lhe: «Que viste de belo em mim para me saudares?» O ancião respondeu: «Vi-te fatigado, e não sabes que te fatigas em vão». Ao que o outro disse: «Com a tua saudação, comovi-me também eu; e fiquei sabendo que és da parte de Deus. Encontrei, porém, um outro monge, mau, que me injuriou, e a quem, por conseguinte, espanquei mortalmente». Neste o ancião reconheceu tratar-se de seu discípulo. A seguir, o sacerdote, agarrando os pés de Macário, disse-lhe: «Não te soltarei se não me fizeres monge». Continuaram, então, o caminho até o alto onde estava o monge; Macário e seu discípulo levaram ò sacerdote e o fizeram entrar na igreja da montanha. Os que viam o pagão com o Abade, se admiravam. Finalmente, fizeram-no monge, e, por causa dele, muitos pagãos se tornaram cristãos. Em conseqüência, o Abade Macário dizia que a palavra má torna maus mesmo os bons e que a palavra boa torna bons mesmo os maus. 40. Do Abade Macário contavam que, certa vez, estando ele ausente, entrou um ladrão em sua cela. Ora, quando aquele chegou, encontrou o ladrão a carregar o camelo com os objetos de Macário. Este, então, entrou na cela, e tomando os seus utensílios, pôs-se, com o ladrão, a carregar o camelo. Quando haviam terminado, o larápio começou a bater o camelo para que se levantasse; o animal, porém, não se movia. Ora o Abade Macário, vendo que este não se levantava, entrou na cela e aí achou uma pequena enxada, que ele colocou sobre o camelo, dizendo: «Irmão, é isto que o camelo deseja». E com o pé deu um golpe ao animal, mandando-lhe: «Levanta-te». Este levantou-se logo, e caminhou um pouco em virtude da palavra do ancião. De novo, porém, deitou-se, e não se levantou mais até que o tivessem descarregado de todos os objetos. Então partiu. 41. O Abade Aio pediu ao Abade Macário: «Dize-me uma palavra». O Abade Macário respondeu: «Foge dos homens; senta-te em tua cela e chora os teus pecados. E não tenhas prazer na conversa com os homens. Assim serás salvo».

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