A FISIONOMIA DO MONGE

1. Si vis perfectus esse…

Em Mateus (XIX, 16-22), lemos a primeira definição do monge: “E eis que alguém, abordando-o, disse: Mestre, que devo eu fazer de bom para ter a vida eterna? E ele lhe diz: Por que me interrogas sobre o que é bom? Um só é bom. Se queres entrar na vida, observa os mandamentos. E ele lhe diz: Quais? Jesus responde: São estes: não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não pronunciarás falso testemunho, honrarás pai e mãe, e amarás o próximo como a ti mesmo. Diz-lhe o moço: Observei-os todos, que me falta ainda? Jesus lhe diz: Se queres ser perfeito, vai, vende o que possuis, dá tudo aos pobres, e terás um tesouro nos céus: depois vem, e segue-me. Quando ouviu estas palavras, o moço afastou-se contristado porque era muito rico”.

 

E aí está uma primeira definição ligada a uma primeira recusa. O moço que Jesus amou, conforme está escrito em Marcos (X, 17-22) recuava diante do chamado mais premente, porque era muito rico. Foi por isso que Nosso Senhor, logo a seguir, acrescentou que era mais difícil um rico entrar no reino dos céus do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha. Cumpre notar, entretanto, que o moço rico do evangelho não se negava à perfeição. Ele mesmo dissera, com impulsiva generosidade, que vinha cumprindo os preceitos desde a juventude, o que se explica, segundo o Pe. Lagrange, pela tendência enfática que os moços têm de falar no seu passado recente. Desde a juventude, quer dizer desde sempre. Ou desde os dias em que havia despertado no moço uma consciência moral. Desejara e procurara a perfeição, quisera sempre orientar-se para um verdadeiro fim, mas assustou-se e fugiu quando o Senhor lhe apontou o caminho mais curto que lhe pareceu difícil demais. Como dirá depois o teólogo, o moço rico do evangelho cumprira o preceito, mas recuara diante do conselho.

 

Ora, duzentos e cinqüenta anos mais tarde, um outro moço, nobre e rico, ouvindo numa igreja a leitura do mesmo texto evangélico: “si vis perfectus esse…”, tomou para si o convite de Deus, saiu a vender suas terras e seus bois, distribuindo tudo pelos pobres, e foi viver no deserto da Tebaida, o mais pobre dos pobres, entre orações, jejuns e espantosas mortificações. Esse moço foi Antão, o monge.

2 . Preceito e conselho

 

Não devo, entretanto, dizer que o monge se define simplesmente pela escolha da perfeição. “Diz-se de uma coisa que ela é perfeita quando atinge seu próprio fim, que é a sua última perfeição”. (Suma Teo. II-II, Qu. 184, art. 1). Ora, a beatitude eterna é o fim último do homem. Logo, não somente os monges, mas todos os cristãos procuram a mesma perfeição. Explica Santo Tomás (Qu. 184, art. 3) que a perfeição consiste essencialmente no preceito e “secundariamente, a título de meio, no conselho”. Assim, o que caracteriza o monge, por enquanto, não é a escolha do fim, mas a dos meios; é a coragem de tomar o caminho mais curto e mais difícil; é a aventura de levar a obediência até os extremos do conselho. Não se contenta em evitar o que contraria a caridade, mas em evitar também o que não a acrescenta. Mas escolhe os meios de um modo especial, isto é, por já ver neles o fim, e faz dessa escolha um estado. Não foi o gosto de se desfazer dos deleites da fortuna e dos regalos  da vida, mesmo os legítimos, que lhe pesaram no espírito. Não por estoicismo que vendeu suas terras e seus bois. Antes daquelas palavras sobre os meios disse Jesus: “um só é bom”. Depois delas, acrescentou: “segue-me”. Tudo o mais então se torna acessório – rebanhos e vinhas – se um só é bom. Todas as coisas da terra serão reflexos de uma só bondade; e, assim sendo, mais vale seguir a luz do que demorar-se nos reflexos ou correr no encalço das sombras.

 

O moço rico do evangelho, cuja franqueza foi amada pelo Senhor, não seguiu a superabundância do conselho, mas tendo amado o preceito está certamente no céu. O bom Mestre, segundo Marcos, fixou seus olhos nos dele, e amou-o. Está escrito. O que absolutamente não está escrito é que Jesus tenha amado naquele moço rico todos os moços ricos que, pelos séculos afora, irão pensar que o preceito consiste na magra pontualidade, e na mesquinha observância das condições mínimas exigidas pela Igreja. Cumpre lembrar que a alma do preceito é a caridade. Amar a Deus e ao próximo, eis os principais mandamentos.

 

Lendo as distinções de Santo Tomás, poderíamos acha-las murchas e sem vida (porque são sóbrias e discretas), sobretudo se não lhe apreendermos o sentido completo. Preceito, no vocabulário corrente, tornou-se uma coisa seca, estrita, suficiente, parcimoniosa, como um negócio que se regateia. Ir à missa aos Domingos e comungar uma vez por ano: eis um preceito da Igreja. Mas é bom saber que esse mínimo, oferecido por Deus, será inútil e vão se faltar aquele máximo que é a caridade. Admite-se a liberdade de não usar a abundância dos meios santificantes; mas o que não se admite dentro da Igreja é o desprezo pelo fim. E é deste que cuida o preceito.

 

Há enormes mistérios dentro da Igreja. Um deles, e dos mais terríveis, a meu ver, é o preceito do mínimo. O homem do mundo, vendo a Igreja por fora, aprecia a enorme sabedoria de sua tolerância no que concerne à prática, mas acha esquisitíssima a vida dos monges. Ora, um pouco de convívio na Igreja, modifica radicalmente essa apreciação, mostrando-nos que esquisitíssima é a vida de quem crê e não usa aquilo em que crê senão uma vez por ano.

 

Na verdade, a Igreja concede que pratiquemos essa singular economia de meios; mas não transige quanto ao fim. Exige o máximo, mas tem a imensa e maternal paciência de levar a sério a presunção dos que se julgam suficientemente aparelhados para dispensar o quotidiano auxílio de sua maternidade. Diria até que ela sorri de nós, com essa história de comungar uma vez por ano, reservando seu riso franco e desvendado para o dia de suas núpcias.

 

O monge, nessa ordem de idéias, é o homem que entendeu por meias palavras o conselho do evangelho, e que decifrou o misterioso sorriso de sua mãe. Por isso vai muito além do preceito. Ou melhor, adivinha a verdadeira profundidade do preceito.

3. O máximo e o mínimo

 

Vimos atrás que está armado o problema de saber o que é o mínimo e o que é o máximo. O moço rico que veio ao encontro do Senhor queria a perfeição, a mesma a que Santo Antão se oferece; mas desejava-se equilibrar entre a riqueza na terra e a riqueza no céu. Não digo que ele fosse um calculador, dessa espécie ridícula que julga ser possível enganar a Deus. Lá diz S. Marcos que Jesus o amou depois de o ter olhado dentro dos olhos. Enganar ele não quis. O que ele vinha buscar era a mesma vida eterna dos santos. E certamente alcançou o que buscava, porque Jesus o amou. Mas, naquele momento de sua vida terrena e carnal ele foi um calculador, sim, um mau calculador, porque não soube distinguir a nova luz que subverte todos os valores, transformando o mínimo em máximo, e o máximo em mínimo.

 

O monge, ao contrário, é o homem para quem começa, a partir de sua opção, a vida subvertida das bem-aventuranças. Ouve e obedece. Vê o máximo no mínimo. Decifra a cruz. As terríveis palavras cruzadas do evangelho. Segue a Cristo. Segue-o passo a passo, de perto, deixando pai, mãe, terras, bois e vinhas, porque um só é bom.

4. Ida e volta

 

Aliás, nessa impetuosa partida, sob a claridade de um novo dia, o monge descobre que está trilhando um caminho de volta. “Redire ad Deum”: eis aí um resumo da vida monástica. É uma volta a Deus pelo caminho mais curto da forte obediência. É uma aventura, como aquela a que o bom humorista alude muitas vezes, glosando a seu modo as palavras evangélicas.

 

E agora vejo que cometi uma imperdoável omissão. Lá no capitulo de um livro, em que enumerei alguns dos oitenta volumes que era possível escrever sobre a simples idéia de volta, não mencionei o “Redire ad Deum” do monge que, permitam-me a imagem, é rápida e fogosa como a do cavalo que sente aproximar-se a paisagem familiar que circunda a casa do senhor.

5. As promessas de Deus

 

Acrescento mais um traço a esse esboço que estou tentando, valendo-me da continuação daquele texto de São Mateus. Nos versículos 27 e 29 do mesmo capitulo lemos: “tomando Pedro a palavra, disse-lhe então: Eis que tudo deixamos para seguir-vos; e agora, o que acontecerá conosco? Jesus lhe diz: Em verdade vos digo, quando o Filho do Homem sentar-se em seu trono de glória, vós que me haveis seguido, vos sentareis também em doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel. E quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, pai e mãe, filhos e campos, por causa de meu nome, receberá o cêntuplo, e possuirá a vida eterna”.

 

De onde eu concluo, nesta face que agora lhe vemos, que o monge é o homem que leva muito a sério as promessas de Deus. Em outras palavras, sua vida se desenrola perto e diante das últimas coisas. Seu caminho de perfeição é um estado, seus meios têm as marcas nítidas do fim, transformando-se o conselho em preceito, e sendo esse novo preceito uma regra, como se pode verificar nas primeiras linhas da Regra de São Bento: “Escuta, ó filho, os preceitos de um mestre…”

 

Os descendentes de Bento, Basílio e Pacômio são homens escatológicos que vivem “em pé diante do Senhor”, atentos, vigilantes, de cintos amarrados, lâmpada acesa, prontos para correr ao encontro do Esposo. De todas as palavras da Sagrada Escritura as que mais lhes concernem são as últimas: “Vinde, vinde Senhor Jesus”.

 

Ou então, as palavras da esposa no Cântico dos Cânticos: “Eu durmo, mas meu coração vigia. É a voz do bem amado. Ele bate…”

6. Vida nova

 

O que ficou dito até agora não basta para marcar uma diferença essencial entre o estado do monge e o que a Igreja preceitua para todos os batizados. O moço do evangelho, fugindo embora ao caminho do conselho, já escolhera o bom caminho. Não se pode dizer, creio eu, que desobedecera ao Senhor, mas que não largara as rédeas ao ímpeto da forte obediência. E é em torno deste ponto que se estabelece uma diferença entre ele e o monge. Antão, Paulo, Macário, foram monges, porque ouviram melhor, descobriram a nova lei do máximo e do mínimo, levaram a sério as promessas, viveram as bem-aventuranças e voltaram a brida solta para a casa de Deus.

 

É evidente pois que o monge, a partir de sua decisão, passará a viver uma vida nova. Uma nova conversatio, como diz a Regra de São Bento. Seus costumes, suas atitudes, seus julgamentos, sofrerão profundas modificações sob a nova luz que torna transparentes as coisas do mundo para a expectação da última realidade. E, como o característico desse estado consiste mais nos meios do que no fim, é fácil prever que as tentativas feitas através dos tempos, pelos eremitas e cenobitas (não falando nos sarabaitas e nos girovagos), serão diversas e por vezes esquisitas. Este, ouvindo dizer que tomasse sua cruz, vai corta duas traves, passando a andar pelos caminhos com uma concreta cruz a lhe pesar nas costas. Aquele outro irá para o deserto. Muitos praticarão macerações prodigiosas. Mas debaixo dessa variedade de métodos vê-se que a nova vida, a conversatio dos monges, tem um centro bem marcado: um só é bom. A própria esquisitice dos meios serve para realçar a constância do fim; e daí tiramos um traço a mais dizendo que o monge procura, na confusão do mundo, aqui e agora, o que somente no céu se pode desfrutar de modo perfeito: a unidade.

 

Etimologicamente monge vem de monosum, no sentido de solitário. Podemos agora tomar a raiz do vocábulo em sentido mais espiritual dizendo que monos é unidade, e que o monge, como Maria, procura centrar a nova vida em torno do único necessário.

7. Integridade

 

Quem diz unidade diz não-divisão. Ora, o casamento é uma divisão (I Cor. VII, 33). O homem casado é dividido, tendo de cuidar das coisas do mundo e de agradar a sua mulher. O “único necessário” não pode pois ser realizado no casamento senão indiretamente, através de recíprocas dificuldades e por meio da santificação mútua. Os cônjuges não podem sequer dispor dos próprios corpos, nem estão livres de formular promessas porque, no vínculo que os prende, mesmo um juramento a Deus seria um perjúrio. Ou, se liberta, por outro lado embaraça; se completa, também divide; se satisfaz, também satura.

 

Mas não são essas desvantagens que impedem o casamento dos monges. Não se trata aqui de uma questão de conveniência ou de legislação, como no caso do celibato dos padres. A discussão sobre as vantagens ou desvantagens da divisão só tem algum valor nos momentos que precedem a escolha. Depois, já não cabe dizer que o matrimonio é desvantajoso para o monge, porque sua escolha exclui essa possibilidade. Há duas doações possíveis e uma exclui a outra, pois de outro modo não seria uma doação.

 

E, se a vida de família, fundada no amor humano, tem agasalhos e doçuras; se é bom muitas vezes ser dois; se é reconfortante mirar-se a gente no espelho de um rosto amigo, que tem seguranças de mãe, mimos de filha e ternuras de esposa; se é bom ter um corpo prolongado, destacado, que anda pela casa, e vai, e vem, separado e distante, seu e outro; se uma das maiores alegrias do mundo, legítima, abençoada, desejada, exigida por Deus, é a de ver ao redor, pela casa, uma porção de carinhas parecidas, nariz de um, olhos de outro, como se nossa divisão se transformasse numa sub-divisão, e andassem assim, vivos, inteiros, em torno de nós, a nos puxar pela roupa, rindo, chorando, falando, as esquisitas somas de nossas semelhanças, reflexos tornados carnes, e carnes nossas, nossas e reflorescidas; se é possível, através da noite do mundo, um pouco de calor e luz nesse acampamento em que o homem e a mulher se entendam, gravemente, profundamente, santamente – mesmo assim – admitida a mais perfeita compatibilidade e a mais harmoniosa compreensão – mesmo assim o casamento, isto é, a convivência conjugal, exclui a convivência monástica.

 

Aqui dividem-se os caminhos. Dividem-se as vidas. E o monge escolhe a vida nova da unidade, sendo íntegro na sua doação, indiviso na sua entrega, virgem no seu amor, uno, monos, e verdadeiramente solitário.

 

Não pelo gosto da privação e do sacrifício; mas pelo gosto de seguir o Cristo Jesus.

8. Voto e consagração

 

Mas a idéia de nova vida sugere logo a de um novo nascimento. Haverá pois um ato, um feito, um gesto, que marquem de modo inconfundível o momento dos primeiros passos. Volta ou partida, ou um pouco ambas as coisas, o caminho do monge será marcado nitidamente em seu início. Não podemos imaginar uma transformação gradativa. Se o moço do evangelho quisesse ser monge aos poucos, vendendo um boi por semana, ou um alqueire de terra por mês, é pouco provável que levasse a empresa a bom termo. Se é vida nova, novo é o nascimento. É preciso nascer de novo, como disse Jesus a Nicodemus.  

 

Mas o cristão já nasceu de novo, para a vida eterna, pela água do batismo, não podendo assim a entrada na vida monástica ser um segundo batismo senão alegoricamente. O batismo é um só.

 

Que caráter terá então esse limiar que o monge atravessa para a sua nova conversatio? Entre Antão e o moço que voltou contristado não pode existir a mesma diferença que separa um pagão de um batizado, um sacerdote de um leigo. Os sacramentos são sete. Não há outro sinal, que opere o que significa, e que sirva para marcar a transição para a vida monástica. Não há diferença de caráter entre um secular e um monge.

 

Por outro lado, porém, o estado do monge difere profundamente da atitude de um cristão que formula bons propósitos. E difere, justamente porque é um estado. Para Santo Tomás, o que marca esta transição é a solenidade dos votos, pela qual se distingue o simples voto (que é uma promessa, isto é, qualquer coisa de potencial) do voto solenizado que é uma entrega total (II-II, Qu. 88, art. 7). E esta solenidade não consiste somente nos gestos visíveis dos homens, mas em “algo de espiritual em que Deus mesmo se empenha, isto é, numa benção ou numa consagração espiritual”. Dir-se-ia que o voto solene é maior e mais decisivo do que a simples promessa pelo fato de ser, não apenas um compromisso a ser cumprido um dia (como um noivado), mas uma atual e plena doação (como um casamento) que a Igreja recebe e em que ela mesma determina as condições. Para Santo Tomás a consagração ou a benção solene não é a causa do estabelecimento no estado monástico. É o sinal. Mas um sinal espiritual com que a Igreja designa aquele que, por ela, se entrega a Deus definitivamente.

 

Este problema está longe de ser uma questão encerrada. Disputa-se ainda em torno do conceito de voto, solenidade e consagração, não estando ao meu alcance desenvolver agora as sutilíssimas dificuldades em jogo.

 

Seja porém qual for o constituinte formal do estado religioso, resulta sempre que o monge, a partir da profissão solene e da consagração, está totalmente entregue a Deus. E cumpre notar aqui, para bem apreendermos a importância desta doação, que o monge, de tal modo crê nas promessas de Deus que se antecipa a elas, digamos assim, atualizando suas próprias promessas, trocando o invisível pelo visível, e o prometido pelo possuído. Por outro lado, porém, Deus não se deixa vencer em generosidade por ninguém. Se o monge avança é porque a graça de Deus o move, sendo sempre do Espírito Santo a primeira moção; e também, se o monge abandona o possuído, recebe no mesmo momento, não o cêntuplo que o espera no céu, mas as abundantes bênçãos que o amparam na terra.

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