A beleza está na busca…
O conceito grego, que funde o bom e o belo, foi aplicado por Bento em suas regras para a vida monástica.
A Beleza de Deus é cantada em várias páginas da Escritura.
“Uma só coisa peço ao Senhor: o que desejo é habitar na Casa do Senhor todos os dias de minha vida para contemplar a BELEZA do Senhor”, canta Davi no salmo 26; o texto hebraico e o grego trazem “Beleza”, mas a Vulgata traduz por “voluptas”… Por várias vezes, veremos o texto bíblico oscilar entre bom e belo. “A beleza é o esplendor da verdade”, dizia Platão, e a língua grega condensou essa afirmação forjando o termo kalokagathia, que faz do bom e do belo as duas vertentes de um único cimo.
A Beleza de Deus reflete-se na obra da Criação. Quando Deus compôs sua sinfonia em seis dias simbólicos, no fim de cada movimento, contemplou sua obra e “viu que era bom”. No fim do sétimo dia, tendo criado o homem à sua imagem – e, portanto, belo – “viu que tudo era muito bom”. Aqui, novamente, difere a Vulgata do texto grego. Aquela escreve “era bom”, mas o grego diz kalón, belo (Gn 1, 4.10. 12. 18.21.25).
Diz também o Livro da Sabedoria a respeito da beleza do mundo criado: “…se, fascinados por sua beleza (dos seres criados) (os homens) os tomaram por deuses, aprendam quanto lhes é superior o Senhor dessas coisas, pois foi a própria fonte da beleza que as criou …a grandeza e a beleza das criaturasfazem, por analogia, contemplar o seu Autor” (Sb 13,3ss).
Os livros sagrados, portanto, referem-se à beleza de Deus e, na passagem citada, ao próprio Deus como Beleza fontal, que deixou sua assinatura em suas criaturas. Mas não somente a natureza é bela; o homem, ápice da obra criadora de Deus, reflete, de modo único, a Beleza do Criador.
“Com providência criei o homem, revela Deus a Sta. Catarina de Sena, e, ao contemplar-me nele, fiquei encantado com a beleza da minha criatura, porque foi do meu agrado criar o homem à minha imagem e semelhança, com especial providência.”
Estamos diante da Beleza de Deus, como um atributo, mas para a tradição do cristianismo oriental, Beleza é um nome de Deus, um nome divino. Dionísio, o Areopagita, em sua obra A hierarquia eclesiástica, chega a se expressar, numa oração: “Que Deus nos permita participar de sua própria Beleza”…
Agostinho e Tomás de Aquino escrevem que “a verdadeira beleza é uma só coisa com a verdade e o bem, só eternos em Deus; na terra, tudo é simplesmente um reflexo da Beleza divina”.
Essa Beleza suscitou no coração de Sto. Agostinho uma página admirável, que tem atravessado os séculos sem perder o seu fascínio:
“Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Tu estavas dentro de mim e eu estava fora, e fora de mim te procurava; com o meu espírito deformado precipitava-me sobre as coisas formosas que criaste. Estavas comigo e eu não estava contigo. Retinha-me longe de ti aquilo que não existiria se não existisse em ti. Chamaste, clamaste e rompeste a minha surdez. Brilhaste, resplandeceste e dissipaste a minha cegueira. Exalaste sobre mim o teu perfume: aspirei-o profundamente e agora suspiro por ti. Saboreei-te e tenho fome e sede de ti. Tocaste-me e agora desejo ardentemente a tua paz”
(Confissões, Livro VII).
A Beleza maculada
Com a transgressão do homem, no paraíso, sua beleza é vulnerada. O pecado desfigura a “imagem” de Deus que o homem espelhava. Podemos retratar o seu estado espiritual aplicando-lhe, com alguma liberdade, estas palavras de Isaías:
“… não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar nem formosura que nos pudesse deleitar…”.
O mundo criado participa dessa ferida. Como o homem, a natureza era destinada à glória e, como ele, após a queda, carece de redenção. “A Criação espera, com impaciência, pela revelação dos filhos de Deus. De fato, ela foi submetida à vaidade – não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu –, na esperança de ser também libertada da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus,” escreve S. Paulo aos romanos (Rm 8, 19-20). Desde agora, no entanto, para quem sabe ouvir a sua voz, a natureza sussurra ao coração do homem, que nela e no que é efêmero procura repouso para o coração: “Amigo, sobe mais acima!”. O grande Agostinho, que passou por esse caminho, escreveu mais tarde: “Fizeste-nos para ti, ó Deus, e o nosso coração permanece inquieto enquanto não repousa em ti”.
O mais belo dos filhos dos homens
Pelo seu mistério pascal (Paixão, Morte, Ressurreição), o Cristo restabelece no homem a beleza desfigurada pelo pecado e o homem recupera o direito de reproduzir aquilo que é: imagem e semelhança de Deus.
A liturgia ortodoxa tem este belo kontákion, na festa da Ortodoxia: “O Verbo… tendo restabelecido a imagem, maculada na sua antiga dignidade, a uniu à Beleza divina”.
Nas páginas sagradas, e sobretudo na Liturgia, se exalta a Beleza do Cristo: ele é o Belo Pastor (ó poimén ó kalós, Jo 10, 11); é o “mais belo dos filhos dos homens” (sl 44,3) etc.
O cristão destinado a praticar obras belas
A Redenção formou um povo novo, participante da beleza do Senhor, dado às “belas obras”. Na Igreja primitiva, o batizado era chamado “iluminado”. A luz passa a ser o seu elemento. Ele não só percebe o que é luz, mas se torna luz e ilumina quem o contempla. A beleza torna-se a nota distintiva da espiritualidade dos cristãos e o segredo de seu apostolado. O adjetivo kalós ocorre cem vezes no Novo Testamento. Serve para descrever o que é útil aos propósitos da vida e, também, agradável de ver; está freqüentemente relacionado com as obras — as belas obras – que devem caracterizar a vida cristã. Assim, lê-se em Tt 2,14: “Cristo Jesus se entregou a si mesmo… para purificar um povo que lhe pertence, zeloso pelas belas obras” (kalôn érgon); … de sorte que aqueles que crêem em Deus sejam solícitos na prática das “belas obras”; 3,8. 14: “precisam aprender a praticar belas obras” etc. A título de curiosidade, para observar a freqüência com que se usa o adjetivo “belo” no Novo Testamento, notemos que se qualifica de belo o fruto que, na Vulgata, é traduzido por “bom” (Mt 3,10); o mesmo se diga da terra que está sem pedras e é fértil (Mt 13,8); o sal é tido por belo (Mc 9,50), como também o vinho (Jo 2,10) etc. Assim o nome de Cristo é kalós, a sua Palavra é kalé e a Lei também o é.
Deus espera de seus filhos a transfiguração progressiva para alcançar uma beleza sempre mais resplandecente: “Todos nós, que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é Espírito” (2Cor 3,18).
A Beleza na vida monástica
São Bento redigiu a sua Regra em latim, mas, perscrutando a sua versão em grego, encontramos freqüente uso do adjetivo kalós, — belo — em latim, bom.
Com a frequência dos textos do Novo Testamento apontados acima, Bento vai lembrar ao monge que lhe cabe fazer “belas obras”: no Prólogo, os versículos 21 e 22 referem-se a belas obras; também no capítulo 2, os versículos 17 e 21; o título do capítulo 4 diz respeito a elas: “Os instrumentos das belas obras e o seu versículo 42 “Bonum aliquid in se cum viderit, Deo adplicet, non sibi” transformam-se em “eán blépes kalón”..; o capítulo 2, versículo 32 assim reza: “Ita se omnibus conformet et aptet, ut non solum detrimenta gregis sibi commissi non patiatur, verum etiam in augmentatione boni gregis gaudeat” e, com surpresa, vemos a “boa grei” transformada em“belo rebanho”; no capítulo 6, v. 2, do mesmo modo, as “boas conversas” passam a ser “belas”; os “irmãos de boa fama” do capítulo 21 tornam-se “tés kalés martyrias”( v.1) e, para não me alongar mais, o capítulo do “zelo bom” (72) passa a ser do “kalós” zelo. Há um total de 23 passagens da Santa Regra que empregam o adjetivo kalós, belo.
A beleza da vida monástica decorre do seu próprio ser, da existência da comunidade monástica. Paulo VI, no discurso que fez em Monte Cassino, em 1964, por ocasião da consagração da igreja abacial, retrata, com rara felicidade, a beleza da vida monástica:
“A Igreja e o mundo, por razões diferentes, mas convergentes, têm necessidade de que São Bento saia da comunidade eclesial e social e se encerre em seu recinto de solidão e de silêncio, para dali nos fazer ouvir o encanto de sua oração, tranqüila e recolhida, como se nos atraísse e convidasse a transpor o limiar de seus claustros para nos apresentar o quadro de uma oficina do “serviço divino”, de uma pequena sociedade ideal, onde reinam o amor, a obediência, a inocência, a liberdade com relação às coisas e a arte de bem usá-las, a superioridade do espírito, a paz; em uma palavra, o Evangelho. Que São Bento volte para ajudar-nos a recuperar nossa vida pessoal, essa vida pessoal pela qual nossa época sente o ardente e inquieto desejo e que a evolução da vida moderna, que desperta em nós esse desejo exacerbado de sermos nós mesmos, sufoca ao mesmo tempo em que a torna consciente. E é essa sede da verdadeira vida pessoal que confere ao ideal monástico a sua atualidade.”
Esse belo quadro da vida monástica, pintado por nosso grande e saudoso Paulo VI, pode ser visto através de vários prismas, que ressaltam a beleza que ela traz em seu interior.
A unidade, que, como diz Santo Agostinho, “é a forma de toda beleza”, transparece na existência de uma comunidade, de um corpus monasterii, como diz o próprio S. Bento
(RB 61,6 = corpo monástico), composto de uma cabeça e de muitos membros, coesos por um mesmo ideal: “Nada, absolutamente nada, antepor ao amor de Cristo, que nos conduza, juntos, à vida eterna” (RB 72, 11-12). Na prática, esses múltiplos membros vivem sob uma Regra e um abade, que faz as vezes do Cristo. Esse o segredo da sua unidade.
A verdade, que a Regra destila no coração do monge a cada passo, é outro elemento da Beleza. A Beleza, como diz Platão, é o esplendor da verdade. Essa conotação da verdade já aparece quando o jovem bate à porta do mosteiro para se integrar à comunidade. S. Bento determina que seja questionado sobre se verdadeiramente procura a Deus, pois disso depende sua entrada. No Prólogo da Regra, se lê: “Se queres ter a vida verdadeira e eterna, preserva a tua língua do mal e não profiram os teus lábios palavras enganadoras…” e ainda, respondendo à pergunta sobre como deve proceder aquele que procura a vida verdadeira: “dizer a verdade do íntimo do coração, não se servir de sua língua para enganar”. Tratando da igreja do mosteiro – oratório, na terminologia da Regra –, escreve: “O oratório seja o que o seu nome indica”. No capítulo 4, dá algumas orientações visando à verdade: “Não querer passar por santo antes de o ser, mas o ser primeiramente para que o digam com mais verdade”. “Não conceder paz simulada.” “Não guardar falsidade no coração” etc.
É conhecida a nota de equilíbrio, de moderação que domina toda a Regra – a célebre sentença dos latinos tomada dos gregos “ne quid nimis”, “o excesso é sempre um defeito”, é incorporada à Regra por S. Bento, no capítulo 64, onde recomenda ao abade: “Nas próprias correções, proceda com prudência e sem excessos, a fim de que, desejando raspar demais a ferrugem, não se quebre o vaso”. No Prólogo, adverte também que, instituindo “uma escola para servir o Senhor, espera nada estabelecer de excessivamente áspero ou penoso” -(v. 46).
No capítulo 22, recomenda que, “ao levantarem-se para o Ofício Divino, chamem-se uns aos outros com moderação” e muitas outras passagens (42,11; 18,16; 64, 12-14.17.19).
A organização detalhada dos trabalhos, dos horários, da própria comunidade cria um clima de serenidade, de harmonia e beleza; o empenho em conservar a paz, evitando discórdias, insistindo no perdão, na reconciliação, no silêncio do coração e do exterior, no amor fraterno, que faz o monge esquecer-se de si para antecipar-se em delicadezas para com os outros, de tudo isso brota uma Beleza que envolve pessoas e coisas, todo o mosteiro.
São Bento, sabendo que suas comunidades são, como a Igreja, “povo santo e pecador”, deixou na Regra os meios para que a face gloriosa do Senhor, quando maculada pela fragilidade de seus monges, recupere sua beleza. Esse o sentido dos capítulos sobre a reparação das culpas, as admoestações para que o amor fraterno supere as vicissitudes da vida cotidiana e o esforço para que todos, abade e monges, “nada, absolutamente nada, prefiram ao Cristo, que nos conduza todos juntos para a vida eterna”(capítulo 72, 11-12).
Esses poucos flashes da vida monástica fazem vislumbrar a Beleza que nela se encontra, mas convém salientar que a seiva que vivifica o seu desabrochar é obra de Deus. É Ele quem, proporcionando todos os meios de comunicação de Sua vida divina, deifica a comunidade monástica e nela deixa estampados traços de Sua Beleza.
Cientes de ser Deus o construtor dessa Beleza da vida monástica, os monges, várias vezes ao dia, ao iniciarem o Opus Dei, isto é, a Liturgia das Horas, que é como a medula de sua vida, fazem chegar ao céu o seu insistente clamor:
“Deus, in adiutorium meum intende, Domine, ad adiuvandum me, festina!”
“Ó Deus, vinde em meu auxílio, apressai-vos, Senhor, em me socorrer.”
Irmã Mônica Castanheira, é monja beneditina do Mosteiro Nossa Senhora da Paz, em Itapecerica da Serra, SP
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