Muito frequentemente, no meio monástico-beneditino, ouve-se a sentença inicial do capítulo 49 da Regra de São Bento: “Se bem que a vida do monge deva ser, em todo tempo, uma observância de Quaresma”. Em alguns casos, algum monge privado de algo por ele desejado, diz à guisa de brincadeira: “Pois é… São Bento diz que a vida do monge é uma eterna Quaresma”, querendo expressar que a vida do monge deva ser de sofrimento e privações “desnecessárias”. Esse modo livre de citar a Regra que nos faz rir tantas vezes, na verdade, esconde um grave erro de compreensão do espírito de São Bento e vai próprio no sentido oposto daquele ao qual a RB deseja nos conduzir.
Por isso, digamos logo qual é o escopo do capitulo 49 da RB: conduzir-nos à Ressurreição do Senhor. “Viver, em todo tempo, uma observância da Quaresma” quer dizer viver vigilante, esperançoso e alegre na expectativa da Páscoa. São Bento não pretende que a vida do monge se transforme em um regime austero e de mortificações extraordinárias sem fim. Ele mesmo declara que na “escola do serviço do senhor (…) esperamos nada estabelecer de áspero ou de pesado” (RB Prol 45-46). A Páscoa é o centro de todo o Código Beneditino. A Páscoa regula e ordena a vida interior e exterior da Comunidade.
Os versículos 1-3 de RB 49 dizem respeito à vivência habitual do monge. A Quaresma é o tempo privilegiado para viver com maior intensidade e solicitude aquilo que já faz parte da nossa fidelidade diária. Além disso, a Quaresma não é de nenhum modo a finalidade da vida monástica.
Normalmente, a opinião comum não vê na Quaresma nada além do que simples prescrições sobre o comer e o beber; alguns mais piedosos pensam ainda nas obras de misericórdia e na oração. Obviamente, a concepção beneditina de Quaresma é muito mais ampla do que prescrições relativas ao nosso estômago.
Dom Paul Delatte, Abade de Solesmes, escreve: “Il (Saint Benoît) parle du carême spirituel, conciliable avec tous les horaires, avec tous les états de santé, supérieur de beaucoup au carême matériel, lequel n’est qu’un procédé qui nous aide à realiser l’autre”.
Tal Quaresma espiritual segundo RB 49, comporta dois elementos: o positivo que exorta os monges a guardarem a vida deles “com toda a pureza” (v. 2); e um negativo que consiste em apagar “todas as negligências” (v. 3). Trata-se, antes de tudo, de eliminar tudo o que nos afasta de Deus, quer dizer, o pecado e tudo o que seja imperfeito ou contrário à vontade do Senhor. Ele mesmo conhece a fragilidade humana, o pecado de cada um, e é d’Ele que vem a força para cada bom propósito da alma humana: “O Deus, que conheceis a fragilidade da natureza humana, ferida pelo pecado, concedeis ao vosso povo empreender com a força da vossa palavra o caminho quaresmal, para vencer as seduções do Maligno e chegar à Páscoa na alegria do Espírito”.
Não se pode negar o espírito penitencial da Quaresma e os meios indicados pela Santa Igreja para abandonar o pecado e buscar a pureza de coração: a oração, o jejum e a caridade, sobretudo através da ajuda aos pobres. São Bento continua o capítulo 49 dando alguns exemplos de como o monge poderá alcançar a pureza de coração: “E isso será feito dignamente, se nos preservarmos de todos os vícios e nos entregamos à oração com lágrimas, à leitura, à compunção do coração e à abstinência” (v. 4). Mas aderir a Deus com toda a nossa alma e vontade, buscar a Deus sem cessar através dos meios possíveis, é a vocação própria do monge. Mas São Bento conhece o homem e distingue o ideal da prática. Paucorum est ista virtus – esta força é de poucos (v. 2), escreve. Nem sempre cumprimos bem ou cumprimos integralmente nossos propósitos e nosso ideal. A Quaresma apresenta-se, então, como uma excelente ocasião para reparar as nossas negligências de outros tempos (cf. v. 3). Omni puritate vitam suam custodire – guardar com toda a pureza a própria vida (v. 2): significa a pureza no sentido profundo que exige um coração livre das coisas do mundo e sempre vigilante na sua relação com Deus (cf. CASSIANO, Ist. 12, 15, 1-2; Conf. 21, 36, 1; 23, 19, 2-3). Em resumo, com a fidelidade de hoje, apagamos as faltas cometidas antigamente.
Seguindo a tradição eclesial, São Bento sugere os meios de nossa santificação durante esse Tempo (v. 4). Antes de tudo, fala da “oração com lágrimas” o que nos lembra o capítulo 20 da RB. A característica de tal oração é a pureza de coração acompanhada da compunção das lágrimas (RB 20, 3). Além disso, nossa oração deve ser breve e pura (RB 20, 4), como convém a um verdadeiro cristão, e não como o fariseu do Evangelho que faz um auto elogio de sua pressuposta pureza e justiça. A pureza de coração, inspirada pelo amor a Deus e pela vivência dos seus mandamentos, vem acompanhada de lágrimas, não propriamente lágrimas exteriores (embora possam ocorrer), mas de uma verdadeira confissão a Deus. As lágrimas exprimem a intimidade, a ternura, a alegria de um coração puro e confiante. Também no capítulo 52, São Bento retoma o tema da oração “com lágrimas e pureza de coração” (RB 52, 4). “Ainsi donc, en Carême, l’oraison privée sera plus fréquente et plus fervente; l’oraison officielle, le service divin sera mieux préparé et célébré avec plus de soin. Nous nous appliquerons spécialement aussi à l’étude des choses divines, lectioni, et c’est pourquoi le chapitre précédent nous parlait des livres de carême”.
É interessante notar a ligação entre oração e leitura, como já vem expresso nos instrumentos do capítulo 4, 55-57:a palavra “escutada” na leitura desperta a compunção que gera a conversão do coração.
A vocação monástica por si só tem suas exigências diárias e perpétuas. O que São Bento espera de seus monges é que acrescentem alguma coisa aos exercícios espirituais que devem ser constantes na Comunidade: “Acrescentemos, portanto, nesses dias, alguma coisa ao encargo habitual da nossa servidão” (v. 5). E apresenta uma segunda lista de sugestões que ilustram o que quer expressar: “orações especiais, abstinência de comida e bebida” (v. 5). É de notar que São Bento abandona as práticas ascéticas extraordinárias, grandes jejuns, grandes orações e mortificações. Apenas acrescenta um pouco mais de disciplina no habitual da vida monástica. E segue uma terceira lista de exemplos: “… subtraia ao seu corpo algo da comida, da bebida, do sono, da conversa, da escurrilidade…” (v. 7). A discrição de São Bento está presente até mesmo no Tempo de Quaresma. Eis o verdadeiro sentido de qualquer penitência durante a Quaresma ou fora dela: buscar conformar nossa vida à vida de Cristo.
A mortificação é boa como meio e como procedimento, não como fim. Os exercícios espirituais nos ajudam a atingir o nosso objetivo. Porém, as mortificações não são “essencialmente” um bem, e devem sempre ser praticadas com muita discrição e sabedoria em vista de um bem maior. De fato, tais práticas devem nos conduzir à aquisição ou ao progresso no bem essencial, como, por exemplo, a misericórdia, a paciência, a justiça, a caridade e tantas outras virtudes . Convém dizer que, tantas vezes, corremos o risco de esquecer a tradição que os nossos Pais nos transmitiram, e até mesmo de esquecer o modesto e equilibrado exercício que nos deixou São Bento.
Sem dúvida, o núcleo de RB 49 é o versículo 6:
“Assim, ofereça cada um a Deus, de espontânea vontade, com a alegria do Espírito Santo, alguma coisa além da medida estabelecida para si”.
São Bento, seguindo a tradição dos Pais, não admite no mosteiro a “vontade própria”. Em todo momento, procura extirpar esse mal (cf. Prol 3; 1, 11; 3, 8; 4, 60.71; 5, 13; 7, 12.19.21.31; 33, 4). RB 49, 6 é o único lugar de toda a Regra onde São Bento admite a vontade própria porque confia na generosidade de cada um. Nós que recebemos tanto dos benefícios do Senhor, somos capazes de oferecer alguma coisa também a Deus. E não poderia ser diferente. Uma oferta por definição é algo de espontâneo. Uma vez obrigada, deixa de ser oferta.
Cada um escolherá, segundo julga sua própria consciência e sua vontade. E tal escolha será feita na “alegria do Espírito Santo” (v. 6). Assim, fortalecido pela oração pura e sincera, pelas santas leituras (lectio), ajudado pela disciplina corporal, vigilante e feliz, o monge “espera a Santa Páscoa, na alegria do desejo espiritual” (cf. v. 7). Por duas vezes, a palavra “gaudio” aparece em um capítulo tão curto. Que a vida do monge deveria ser, em todo tempo, uma observância da Quaresma é verdade pois deveria sempre alegrar-se com a vitória segura e já conseguida por Cristo, porque deveria ter sempre a alegria de Jesus ressuscitado, andar sempre na luz de Cristo.
A própria Escritura nos desperta do nosso sono (desânimo, depressão, desencorajamento, frustrações que tornam o nosso coração endurecido) para ouvirmos a Boa Nova (cf. Prol 8-13). Não são as trevas que nos envolvem nos dias de Quaresma, mas a doce voz do Senhor que se apresenta a nós e nos convida para a verdadeira vida (cf. Prol 14-20). Ele, antes que o invoquemos, já nos responde: “Eis-me aqui” (Prol 18). O nosso caminho quaresmal não é um caminho solitário, como se fôssemos abandonados por Deus. Não seríamos capazes de realizar tal caminho se não fôssemos acompanhados pelo Senhor “que pela sua piedade nos mostra o caminho da vida” (cf. Prol 20). É claro que caminhos também para a Cruz, mas já sabemos de antemão que doravante não é mais sinal de sofrimento, mas de amor e de vitória. Quanto às dificuldades da vida, cada um conhece bem as próprias cruzes de cada dia. Mas o caminho quaresmal não diz respeito a isso.
Durante todo o ano temos tantos problemas físicos, espirituais, financeiros, etc. A diferença está entre alguém que passa por uma dificuldade “sozinha”, quer dizer, que não confia em Deus e muitas vezes, não confia em ninguém além de si mesma. Não há meio de ajudar-se e não permite a ajuda dos outros. Outra pessoa, ao contrário, confia em Deus e deixa-se ajudar pelos anjos que Ele envia, seja através de uma ajuda espiritual, seja através de outras pessoas que fazem as vezes dos anjos. Como escreve Dom Delatte: “Quand il y a souffrance physique ou dépression morale, l’ennemi n’est jamais loin; le Seigneur non plus, par bonheur, ni ses anges” . Assim cantamos no “gradual” do I Domingo da Quaresma: “Angelis suis mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis” (Salmo 90, 11). Desde o início, a Igreja nos confia à proteção e aos cuidados dos santos anjos.
A esse ponto alguém poderia por a questão: “Mas São Bento não limita a generosidade ou a própria vontade de seus monges submetendo a escolha de cada um à vontade do Abade?”
Ora, o bem da obediência intervém nesse caso para garantir a discrição nos possíveis abusos. São Bento quer que tudo o que seja oferecido seja feito com a permissão, com a oração e a vontade do Abade (cf. RB 49, 8-10). O Pai espiritual do mosteiro deve dirigir a oferta de cada um de maneira que seja fecunda. No mosteiro, outro grave risco que São Bento procura extirpar é o da presunção. Alguém poderia impor-se pesadas mortificações e pesadas renúncias não inspirado pela pureza de coração, mas pela arrogância, pelo desejo de parecer melhor do que os outros, ou mais santo. De outro lado, alguém poderia impor-se o mínimo, demonstrando preguiça e negligência com as coisas divinas, vazio de toda “alegria espiritual” e desprovido de toda “alegria do Espírito”. Assim, o Abade tem o dever de regular as sugestões de seus monges para que sejam verdadeiramente fecundas. O Abade, por sua vez, deve lembrar-se sempre de que ele também está sujeito à Regra , e não só isso, mas lembrar-se de que faz as vezes de Cristo na direção da Comunidade.
“E na alegria do desejo espiritual, espere a Santa Páscoa”.
Trata-se da alegria de um desejo espiritual e não somente das observâncias exteriores. São Bento havia já acenado no capítulo 4, 46 o fim do nosso bom desejo: “Desejar a vida eterna com toda a cobiça espiritual”. Esse desejo aqui é dirigido à Páscoa que é o Ressuscitado. Em resumo, RB 49 quer nos preparar para o encontro feliz e festivo com Deus. O Santo Padre recordou que “enquanto espera o encontro definitivo com o seu Esposo na Páscoa eterna, a Comunidade eclesial, assídua na oração e na caridade operosa, intensifica o seu caminho de purificação no espírito, para conseguir com maior abundância do Mistério da redenção a vida nova em Cristo Senhor”.
Tal vida em Cristo já nos é dada através do nosso Batismo: mortos e ressuscitados com Cristo, seguimos ao Senhor nessa vida na certeza de participarmos também da vida Eterna que só Ele é capaz de nos dar. Diz o Santo Padre que “um nexo particular liga o Batismo à Quaresma como um momento favorável para experimentar a Graça que salva. (…) Desde sempre, de fato, a Igreja associa a Vigília Pascal à celebração do Batismo: nesse sacramento se realiza aquele grande mistério pelo qual o homem morre ao pecado, se faz participante da vida nova de Cristo Ressuscitado e recebe o mesmo Espírito de Deus que ressuscitou Jesus dos mortos (cf. Rm 8, 11)” . Rezemos com o Santo Padre suplicando ao Senhor que “o nosso caminho quaresmal possa inspirar-nos a firme vontade de conformar a nossa vida a Cristo, de modo que celebrando o mistério da Páscoa seremos sepultados com Cristo e ressurgiremos para a plenitude da vida”.
Que o Senhor nos ajude na nossa generosidade e que todo o nosso empenho seja sugerido pelo Espírito Santo e executado com alegria, docilidade e mansidão.
Adriano BELLINI OSB, monge da Abadia de Nossa Senhora da Assunção, São Paulo – Brasil