Reflexão apresentada no Congresso dos Abades Beneditinos de 2012

(Dom John Kurichianil, OSB)

 

Não penso que seja possível definir a «identidade beneditina» em termos do que poderíamos chamar «carisma beneditino», como ocorre com outras Ordens e Congregações religiosas. A Regra de São Bento não faz menção de nenhum carisma específico. Conforme a Regra, alguém abraça a vida monástica para procurar a Deus; por conseguinte, é dever do mestre de noviços discernir «se o noviço procura verdadeiramente a Deus» (RB 58,7). O noviço deve aprender a procurar a Deus, pois é o que fará a vida inteira como monge.

Entramos no mosteiro não porque não encontramos no mundo o que procuramos, mas para procurar e encontrar aquilo que, através da vida monástica, aspiramos, isto é, numa vida de oração, de trabalho e de estudo; numa vida de obediência, de estabilidade e de conversão, no celibato, na simplicidade, na pobreza, na hospitalidade, no silêncio, na solidão. Um monge beneditino, desde o seu ingresso no mosteiro, especialmente a partir do instante em que faz sua profissão monástica, se compromete a «procurar a Deus» no contexto de um modo vida descrito pela Regra, e tal como ela é vivida numa determinada comunidade. Assim, a procura de Deus pode ser considerada como o tema central da Regra, à qual estão ligados todos os demais aspectos fundamentais do modo beneditino de vida.

 

1. Procura de Deus e consciência da presença divina

O tema da procura de Deus está intimamente ligado à ideia da presença divina, da qual o monge deve sempre estar consciente e na qual precisa sempre tentar viver. Ele deve crer que Deus está presente em toda parte (RB 19,1) e que tudo é perceptível «ao olhar da divindade» (RB 7,13); que Deus está presente aos pensamentos, porque «Deus perscruta os espíritos e os corações» (RB 7,14); que Deus está presente de maneira particular quando o monge está rezando, quer se trate da oração comum ou da oração pessoal (RB 19,2). Deve estar consciente da presença divina quando se deixa envolver pela «lectio divina», na medida em que a «lectio divina» (RB 4,55) é a leitura orante e meditativa da Palavra de Deus. Deve reconhecer a presença de Deus no abade, no qual «crê-se que faz as vezes de Cristo» (RB 2.2; 63,13), nos irmãos, especialmente os doentes (RB 31,9; 36,1-2), nos hóspedes que vêm ao mosteiro (RB 53,1), em particular os pobres (RB 4,14; 31,9; 53,15; 55,9; 66,3).
A insistência de São Bento sobre a presença de Deus se baseia em diversas referências bíblicas:

• Noções de se manter na presença de Deus (1Rs 17,1; 18,15; 19,11; 2Rs 5,16); andar na presença de Deus (Gn 17,1; Is 38,3); andar com Deus (Gn 5,22.24); ou andar seguindo a Deus (Jr 2,2).

• Noção de que Deus está especialmente presente em pessoas por meio das quais se responde ao chamado de Deus para uma missão específica (Gn 39,2.3.21.23; Ex 3,12; Jz 6,12; Jr 1,8; 15,20).

• Noção da consciência pessoal da presença divina na própria vida (Gn 39,9; Jr 20,11), que permite perseverar no caminho da procura de Deus.
Enfim, como Enoc, o monge é aquele que anda com Deus a vida inteira; e não mais o encontramos, porque Deus o levou consigo (Gn 5,22.24). Ser levado por Deus é o termo ou a finalidade da caminhada do monge com Deus (Jo 6,66-69) e de sua procura de Deus.

 

2. Procurar a Deus e dar-lhe o primeiro lugar

Visto que a única preocupação do monge é a procura de Deus, ele deve «amar ao Senhor Deus de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças» (RB 4,1), o que é simplesmente o primeiro mandamento: «Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças» (Dt 6,5). No capítulo 4 da RB, esse amor de Deus deve se manifestar pela obediência aos mandamentos, aos ensinamentos do Novo Testamento, bem como aos grandes princípios da vida monástica.

O amor do monge por Deus deve manifestar-se concretamente através de seu amor preferencial por Cristo: «nada deve preferir ao amor de Cristo» (RB 4,21); «nada absolutamente deverá antepor a Cristo» (RB 72,11); deve obedecer porque, para ele, «nada há de mais caro que o Cristo» (RB 5,2). Esse grande princípio estabelecido por São Bento é outra visão ou extensão de RB 4,1. É o amor preferencial por Cristo que transforma o monge em soldado de Cristo, prestes a lutar na milícia de Cristo (RB Pr 3.40; 1,2; 58,10; 61,10). A luta em questão é o combate espiritual de que fala São Paulo em sua Carta aos Efésios (6,13-17). A maior parte dos instrumentos das boas obras, elencados no capítulo 4 da RB, podem, a justo título, ser considerados como as armas desse combate espiritual. O monge, na medida em que continua a lutar contra todos os males, especialmente no mais profundo de si mesmo, é um soldado de Cristo semelhante aos mártires dos primeiros séculos. O aspecto mais importante desse combate por Cristo consiste, para o monge, em vencer os maus pensamentos e as tentações que lhe advêm ao coração, «quebrando-os de encontro à Rocha que é o Cristo, ainda ao nascer» (cf. RB Pr 28; 4,50), isto é, desde que se apresentem.

Na RB 43,3, há uma extensão desse amor preferencial por Cristo: «Portanto, nada se anteponha ao Ofício Divino». Os três princípios seguintes caminham juntos. Amar a Cristo acima de tudo é a manifestação concreta de nosso amor por Deus com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças. Amar o Ofício Divino acima de tudo é a expressão do nosso amor único por Cristo. Assim como os discípulos manifestaram outrora seu amor preferencial por Cristo quando abandonaram tudo ao chamado de Jesus, o monge demonstra seu amor preferencial por Cristo abandonando o trabalho que está fazendo assim que ouve o sinal a chamá-lo para o Ofício Divino. O toque do sino é a voz de Cristo a chamar o monge para encontrá-lo, para rezar. Tudo deixar, ao ouvir o sinal para o Ofício Divino, é a resposta cotidiana do monge ao chamado de Cristo. Na vida concreta, podemos medir a autenticidade da procura de Deus quando levamos realmente a sério o chamado para o Ofício Divino.

 

3. Procurar a Deus na oração

O mosteiro é a «escola de serviço do Senhor» (RB Pr 45). É o lugar onde podemos aprender e por em prática a arte de servir o Senhor. A expressão «servir o Senhor» tem uma dupla significação na Bíblia. Em sentido geral, significa levar uma vida de obediência a Deus, uma vida agradável a Deus. Mas quer dizer também uma vida de adoração e de oração. O povo de Deus saiu da terra do Egito para servir o Senhor, para adorar o Senhor (Ex 4,23; 5,1.8). Os hebreus deixaram de ser servos do faraó e dos egípcios para se tornarem servos do Senhor; abandonaram o culto dos ídolos do Egito (Ez 20,7) para adorar somente a Deus. Pela aliança, o povo de Israel tornou-se o povo do próprio Deus. Essa pertença exclusiva devia se manifestar em servir unicamente a ele (Ex 20,2-5). A profissão monástica é uma aliança pela qual o monge se compromete a pertencer exclusivamente a Deus (RB 58,21.25). Viver a vida a serviço de Deus, na obediência e na adoração litúrgica, é para ele uma obrigação (RB 5,3; 50,4; 18,24).

É, sobretudo, na oração que o monge procura e encontra Deus, encontra a vontade de Deus. É na oração que ele recebe a força para realizar a vontade de Deus que discerniu em sua oração. Essa vontade se aplica à comunidade em seu conjunto, razão da insistência na oração comunitária. Mas, diz respeito também a cada monge, donde também a insistência na oração pessoal. Como as grandes figuras do Antigo Testamento, o monge deve interrogar a Deus (1Sm 22,13.15; 23,2.3.9-12; 2Sm 2,1; 1Rs 22,5.7), consultar Deus, aconselhar-se com Deus (Os 8,4). Esse recurso a Deus deve ser igualmente praticado a nível comunitário. Procurar a Deus, interrogá-lo ou pedir-lhe conselho, são coisas que caminham juntas; não pode haver procura de Deus sem interrogá-lo ou lhe pedir conselho.

 

4. Procurar a Deus na «lectio divina»

O emprego do adjetivo «divinus» na RB pode nos ajudar a compreender o que é a «lectio divina». Esse adjetivo é utilizado para designar as Sagradas Escrituras (RB 2,5.12; 7,1; 9,8; 28,3; 31,16; 53,9; 64,9; 73,3), a presença divina (RB 19,1), a leitura divina ou sagrada (RB 48,1) e a oração comunitária (RB 19,2; 43,1). Por conseguinte, a «lectio divina» designa a leitura orante e meditativa das Sagradas Escrituras na presença de Deus. São Bento pede ao monge que leia todos os livros do Antigo e do Novo Testamento (RB 9,8; 42,4; 73,3), os escritos dos Padres da Igreja (RB 9,8; 73,4) e todas as obras importantes da literatura monástica (RB 42,3; 73,5). Mas, enquanto os escritos dos Santos Padres explicam as Escrituras, a literatura monástica aplica a Palavra de Deus à vida diária do monge. Por conseguinte, a «lectio divina» nada mais é do que a leitura e o estudo da Palavra de Deus. Se quisermos nos beneficiar da «lectio divina», é preciso que a façamos exatamente com as mesmas disposições que devemos ter na oração: com «humildade, reverência e pureza de devoção» (RB 20,1-2).

O objetivo principal da «lectio divina» é adquirir um conhecimento mais profundo da Palavra de Deus. É na «lectio divina» que nos mantemos em contato com a Palavra de Deus, com o poder da Palavra de Deus, com o próprio Deus. É na «lectio divina» que nos alimentamos da Palavra de Deus (Jr 1,9; 15,16; Ez 2,8; 3,1-3.10); e é essa manducação que dá energia a todas as nossas ações. Como Jesus, em Lc 4,17-21, o monge deve encontrar uma mensagem para si mesmo no texto que lê. É essa descoberta pessoal das profundezas da Palavra de Deus que leva à descoberta de Deus.

A «lectio divina» é uma condição necessária para a oração. É preciso rezar com inteligência (RB 19,4: psallite sapienter), o que requer um bom conhecimento dos salmos, dos hinos e das leituras feitas no Ofício divino. É daí que procede o conselho de São Bento aos monges para empregarem bastante tempo a ler e estudar os salmos e as leituras (RB 8,3). A mesma ideia está implícita na recomendação que, ao rezar, a mente deve estar de acordo com a voz (RB 10,7). O que sai da boca deve provir da mente e do coração. A «lectio divina» é uma condição igualmente necessária para a celebração frutuosa da Eucaristia que, normalmente, deve ser o verdadeiro centro da liturgia monástica. Para que os olhos do coração se abram e possam ver e reconhecer Jesus (Jo 9,35-38; Lc 24,31) na fração do pão (Lc 24,32), o coração deve ter sido antes inflamado pela escuta da Palavra (Lc 24,32); Jeremias compara a palavra ao fogo (Jr 20,9; 23,29). De modo geral, sem a prática da «lectio divina», a oração monástica tende a tornar-se mecânica.

Como Jeremias, o monge deve procurar a Palavra, encontrá-la e comê-la (Jr 15,16). Essa procura da Palavra é procura de Deus, desejo e sede de Deus (Sl 41[42],1-2; Sl 62[63],1), espera sincera de Deus (Is 8,17). Não se pode sinceramente procurar a Deus e encontrá-lo sem uma verdadeira «lectio divina» que permita ao monge saborear a Palavra e transformá-la em felicidade e alegria do seu coração (Jr 15,16; Ez 3,3; Jo 3,29). Sim, procurar a Palavra significa procurar a Deus, e encontrar a Palavra significa encontrar a Deus, porque a Palavra é a Palavra de Deus.

A «lectio divina» nutre e fortalece a fé do monge, dando-lhe o suporte intelectual indispensável para sua vida de fé, pois a vida monástica é uma vida de fé (RB Pr 49). Com efeito, o ser humano deve crer como um «animal racional». Notemos, a propósito, a maneira como o Evangelho de São João associa conhecimento e fé. Os dois termos «conhecer» e «crer» são quase a mesma coisa num certo número de passagens daquele Evangelho (Jo 4,42; 6,69; 17,8.21.23). Entretanto, o mais importante para São João, a vida eterna, consiste num conhecimento: «Esta é a vida eterna: que te conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro, e a Jesus Cristo, aquele que enviaste» (Jo 17,3). Também São Paulo parece dizer a mesma coisa com a expressão «conhecimento da fé» (Rm 1,5; 16,26). Se tudo isso é verdade, a «lectio divina» permite ao monge encontrar a Deus já nesta vida. A advertência de Oseias que «um povo sem conhecimento caminha para sua perda» é também hoje pertinente como em seu tempo; e muito especialmente para os monges!

 

5. Procurar a Deus no trabalho

No capítulo 48, da RB, encontramos uma definição: um verdadeiro monge é aquele que ganha sua vida com o trabalho das próprias mãos. Para São Bento, o monge é essencialmente um trabalhador. Embora fale de vários tipos de trabalho (RB 46,1; 57,1; 66,6), ele parece conferir uma particular importância ao trabalho agrícola. Isso é evidente no contexto do capítulo 48,8: «Se, porém, a necessidade do lugar ou a pobreza exigirem que se ocupem, pessoalmente, em colher os produtos da terra, não se entristeçam por isso» (RB 48,7). Parece que «as frutas ou legumes frescos», mencionados no capítulo 39,3, são produzidos pelos monges em sua horta («hortus»: RB 7,63; 46,1; 66,6). A menção de «campos» («ager») na RB 7,63 e 41,2.4 é igualmente importante. No espírito de São Bento, trabalhar e alimentar-se estão intimamente ligados (RB 39,3.6; 40,5; 48,7-8), não apenas no sentido em que o monge se alimenta a fim de refazer as forças para trabalhar, mas também no sentido de trabalhar para ter o que comer. A menção dos irmãos que se encontram em um trabalho distantes do mosteiro (cf. RB 50,1), e possivelmente também o fato de trabalharem durante horas a fio, parece de igual modo se referir às atividades agrícolas.

Por sua insistência no trabalho dos campos, São Bento põe o monge em contato direto com a natureza, com a mãe-terra. Isso se harmoniza perfeitamente com a maneira pela qual o homem é apresentado na Bíblia. «Deus formou o homem do pó da terra» (Gn 2,7); «Deus plantou um jardim no Éden» (Gn 2,8); «Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden para cultiva-lo e guarda-lo» (Gn 2,15); o homem deve comer seu pão com o suor de seu rosto (cf. Gn 3,19); e, quando morrer, voltará ao pó da terra (cf. Gn 3,19). Além do mais, vemos Deus entregando todos os animais ao homem para que este lhes dê nomes (cf. Gn 2,19). Tudo isso mostra como o homem, por sua natureza, está ligado ao mundo vegetal e ao mundo animal. E ainda: por sua presença e seu trabalho, o homem aperfeiçoa a obra criadora de Deus. Note-se que uma das duas razões pelas quais, em dado momento, no processo da criação, «não existia nenhum arbusto no campo, e nenhuma erva havia brotado, provém do fato que não havia homem para cultivar o solo» (Gn 2,5).

Em Gn 3,8, lemos a narrativa do «Senhor Deus que passeava no jardim»; o texto prossegue dizendo que o «homem e sua mulher esconderam-se da face do Senhor Deus». Deus encheu a natureza com sua presença, com sua glória. O homem deve descobrir a grandeza de Deus na natureza, reconhecer a glória de Deus na natureza e proclamar o seu louvor (Sl 18[19],1; Rm 1,19-20). Sim, a presença de Deus na natureza é tão real como a presença de Cristo na Eucaristia, embora se deva compreender o adjetivo «real» de modo diverso nos dois casos. Creio que esses dois modos de presença estão ligados tão intimamente que se alguém não reconhece a presença de Deus na natureza não é capaz de reconhecer a presença de Cristo na Eucaristia. Creio também que o monge envolvido com o trabalho agrícola tem uma melhor oportunidade de encontrar a Deus na natureza. Trabalhando a terra, andando pelos campos e neles meditando, à semelhança de Isaac (cf. Gn 24,63), o monge descobre a presença de Deus na natureza. Isso lhe possibilita o reconhecimento do imenso dever como guardião da natureza. Ele deve protegê-la e trata-la com carinho, nunca abusar dela nem jamais ceder à tentação do consumismo. Encontrar a Deus na natureza requer necessariamente uma procura muito séria e honesta. Quem não encontra a Deus na natureza se arrisca simplesmente a não encontra-lo.

 

6. Procura de Deus e obediência

Os beneditinos são cenobitas. Para São Bento, os cenobitas são «o poderosíssimo gênero» (RB 1,13) de monges: «poderosíssimo» porque vivem «sob uma Regra e um Abade» (RB 1,2); «poderosíssimo» porque «vivendo em comunidade, desejam que um Abade lhes presida» (RB 5,12); «poderosíssimo» porque «empunham as gloriosas e poderosíssimas armas da obediência» (RB Pr 3). Em poucas palavras, «poderosíssimo» porque, como no caso de Jesus (Jo 4,34: «Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou»), a obediência é o alimento que nutre e fortalece o monge.

São Bento quer que o monge renuncie à sua própria vontade (RB Pr 3; 3,8; 5,7), não ame a própria vontade (RB 7,31), «odeie» a própria vontade (RB 4,60). A obediência é um processo mediante o qual o monge aprende a substituir a própria vontade pela vontade de outro, a caminhar «sob o juízo e domínio de outro» (RB 5,12). Esse «outro» afinal é o próprio Deus, pois «a obediência prestada aos superiores (ou a qualquer outro que o substitua) é tributada a Deus» (RB 5,15). Com efeito, esse processo de substituição da própria vontade pela vontade de Deus não é fácil. São Bento fala de «labor da obediência» (RB Pr 2), querendo dizer com isso que a obediência é laboriosa, difícil. E não pode ser de outro modo. Por que? Porque o próprio Jesus, de cuja obediência o monge é um imitador (cf. RB 5,13), experimentou duramente essa obediência: «Mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência, por aquilo que sofreu» (Hb 5,8); e foi pela obediência que ele «tornou-se perfeito» (cf. Hb 5,9). Para o monge, chamado a «atingir a perfeição» da vida monástica, não pode haver nenhum outro meio além desse.

O monge é aquele que faz uma viagem em direção a Deus. E a estrada pela qual ele anda é o «caminho da obediência» (cf. RB Pr 2; 71,2). A obediência não é apenas uma boa disposição para a submissão ou a docilidade, mas a vontade de seguir uma Regra concreta, de colocar-se sob a direção de um determinado Abade, que deve ser considerado como o legítimo intérprete da Regra, de mostrar-se obediente aos diversos responsáveis nomeados pelo Abade (cf. RB 71,3) e a seus irmãos monges (cf. RB 71,1). A obediência significa obediência aos mandamentos de Deus, aos ensinamentos do Novo Testamento, a todos os sadios princípios da Tradição monástica e das regras e regulamentos de uma comunidade particular (cf. RB 4). A obediência só é possível onde existe amor, pois ela é uma expressão do amor. É um ponto forte do Evangelho de São João (14,15.21.23.24; 15,14). E São Bento evoca esse mesmo ponto no capítulo 68: depois de um diálogo honesto com o Abade (RB 68,1-3), se este ainda insistir para que o monge execute a tarefa difícil que lhe foi ordenada, o irmão deve saber que «é bom para ele obedecer», e «obedecer por amor». A obediência amorosa e respeitosa é o que um filho deve a seu pai (Ml 1,6; RB Pr 1). Esse foi o caso de Jesus, e deve ser verdadeiro para o monge.

O autor da Carta aos Hebreus afirma que Jesus, por sua obediência, «tornou-se causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem» (Hb 5,9), isto é, somente para «os que lhe obedecem». É o mesmo que lemos na Carta aos Romanos (5,12-21). É nessa perspectiva que a obediência monástica deve ser considerada. Por sua obediência os monges participam da salvação eterna ofertada por Jesus; e essa salvação consiste em tornar-se amigos de Deus, como Abraão (Tg 2,23), ou amigos de Jesus, como João Batista (Jo 3,29), Lázaro (Jo 11,11) e os Onze discípulos (Jo 15,13-15). A obediência é causa de intimidade com Deus e com Jesus, pois ela promove a unidade e a harmonia das vontades – a vontade de Deus e a do monge (cf. Jo 8,29). Eis o que é a salvação.

O que acontece exatamente na vida do monge obediente? A obediência permite aos monges estarem vivos para Deus (Rm 6,11), viver para Deus (Gl 2,19), viver pelo Pai por causa de Jesus (Jo 6,57). A obediência é uma procura, e a vida para Deus é a finalidade – ambas caminhando junto, é claro!

 

7. Procura de Deus e estabilidade

Os termos «vivendo em comunidades» que definem os cenobitas (cf. RB 1,1; 5,12) implicam a ideia de estabilidade. A estabilidade não é somente a vinculação à vida monástica de modo abstrato nem a fidelidade a determinados ideais ou princípios monásticos; é também pertença à vida monástica tal como é vivida numa comunidade concreta. Um monge beneditino está enraizado numa determinada comunidade, a um determinado mosteiro e a sua comunidade. A estabilidade implica no amor por seu mosteiro, por sua comunidade e à vida que nele se vive; significa ainda o amor por seu Abade (RB 72,10) e seus irmãos (RB 72,8). Essa vinculação a tudo quanto existe no mosteiro o torna capaz até mesmo de ver os objetos e demais utensílios do mosteiro «como vasos sagrados do altar» (RB 31,10); e recomenda que tudo seja utilizado com o maior cuidado (RB 32,4-5; 46,1-2).

Aquele que ama profundamente o seu mosteiro evitará ficar perambulando fora dele; de fato, ele se dará conta de que não é conveniente «se dispersar fora» do mosteiro (RB 66,7). O monge ama seu mosteiro, que é «a Casa de Deus» (RB 31,19; 53,22; 64,5), porque está em seu «claustro» (RB 4,78), ou seja, em seu próprio espaço, onde aprende a arte de servir a Deus (RB Pr 45), onde aprende e pratica a «arte espiritual» (RB 4,75) fazendo uso de todos os instrumentos das boas obras enumerados no capítulo 4 da Regra; é aí que ele pode procurar e encontrar a Deus.

É o voto de estabilidade, a vinculação à sua comunidade, que permitirá ao monge nunca abandonar a Cristo como Mestre, mas, sim, a perseverar em seu ensinamento até à morte (cf. RB Pr 50); é o voto de estabilidade que impulsiona a continuidade dessa viagem para Deus. Essa estabilidade, esse enraizamento, esse sentido de pertença a uma comunidade concreta, permite ao monge crescer de maneira orgânica e se tornar «forte».

A estabilidade entra em declínio quando se começa a procurar ocasiões de saída, passear fora do mosteiro, procurar um ministério fora, buscar ocasiões de se tornar conhecido no exterior. Quando alguém não se sente mais «em casa» no mosteiro, então começa a olhar para fora. É o começo do fim da vida monástica. Se a estabilidade do monge lhe permite continuar caminhando para Deus, abandonar sua estabilidade significa dar as costas para Deus.

 

8. Procura de Deus e conversão

O terceiro voto beneditino é o de conversão, conversão de vida, mudança de coração e de mentalidade. A conversão é um processo através do qual o monge se torna uma «nova criatura» (2Cor 5,17; Gl 6,15), um «homem novo» (Ef 4,24); é o processo pelo qual ele se reveste de Cristo (cf. Rm 13,14; Gl 3,27), adquire o pensar de Cristo (cf. Fl 2,5), Cristo é formado nele (cf. Gl 4,19). Entrar no mosteiro ou abraçar a vida monástica já é um início de conversão (RB 58,1; 63,1). Em algumas passagens da Regra de São Bento, o termo «conversão» («conversio» ou «conversatio») é quase uma definição da vida monástica (RB 21,1-2; 73,1-2). Nessa mesma Regra, a conversão é um voto que significa o seguinte: por sua profissão, o monge assume o compromisso de levar uma vida de conversão permanente até sua morte. Essa ideia está implícita na apresentação que São Bento faz da vida monástica como uma volta para Deus. Precisamos voltar, porque nos afastamos; precisamos estar sempre voltando, porque estamos sempre nos afastando. É a razão pela qual devemos «confessar todos os dias a Deus na oração, com lágrimas e gemidos, as faltas passadas e daí por diante emendar-se delas» (RB 4,57-58). A conversão deve ser uma experiência cotidiana.

Só poderemos compreender bem o valor e a especificidade desse voto beneditino se o relacionarmos com a importância da conversão na Bíblia. Os profetas, que eram de algum modo os monges do Antigo Testamento, viveram uma vida de conversão; e a conversão era a mensagem central da pregação deles. João Batista veio para pregar a conversão (Mt 3,2) e proclamar um «batismo de conversão» (Mc 1,4; Lc 3,3). Jesus começou seu ministério público com as seguintes palavras: «O Reino de Deus está próximo, convertei-vos» (Mc 1,14). Como profeta do Novo Testamento e discípulo de Jesus, o monge deve levar uma vida de conversão e transmitir a mensagem de conversão obviamente mais por sua vida do que por suas palavras. A conversão é procura e encontro de Deus; é dar as costas a tudo que não é de Deus e se voltar para ele.

A «conversão» só é possível num ambiente de «deserto». Para conseguir a conversão de Israel, Deus precisou «conduzi-lo ao deserto» (cf. Os 2,16). Para escutar a mensagem de conversão de João Batista e se submeter a seu batismo de penitência, o povo foi ao «deserto» onde João exercia seu ministério (Mt 3,1.5-6; Mc 1,5). É o que o monge faz quando abraça a vida monástica: deixa o mundo e foge para o «deserto» – o mosteiro – a fim de levar uma vida de conversão. E lá, no deserto do mosteiro, ele é alimentado por Deus (Ap 12,6.14); lá, sob a proteção divina, ele está ao abrigo dos ataques do Dragão, como a Mulher no Apocalipse (Ap 12,6.13-14). Esse contato permanente com o deserto, essa fidelidade constante ao ideal do deserto, faz com que «seu espírito se fortaleça», como João Batista (cf. Lc 1,80). Destarte, enquanto os eremitas encetam o combate solitário no deserto, os cenobitas vivem no deserto do mosteiro, comprometidos no mesmo combate. Permanecendo no deserto, podem estar seguros da vitória, com o auxílio de Deus (RB Pr 4.41) e a companhia de muitos irmãos (RB 1,4).

 

9. Procura de Deus e renúncia

Quando Deus chamou Abraão, ele teve que deixar «sua terra, sua família e a casa de seu pai» (cf. Gn 12,1). Quando Jesus chamou seus discípulos, eles também deixaram tudo, seus familiares e seus pertences, e o seguiram (Mt 4,20.22; Mc 1,18.20; Lc 5,11). Jesus pediu renúncia total a todos os que queriam segui-lo de perto (Mt 10,37-39; Lc 14,26-27.33). Ao jovem rico que desejava possuir a vida eterna, Jesus disse: «Se queres ser perfeito, vai vende os teus bens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me» (Mt 19,21). Os membros da primeira comunidade cristã de Jerusalém praticaram a renúncia vendendo os seus bens e dando o lucro aos apóstolos para ser distribuído entre os fiéis (At 2,45; 4,34-37). Quando se converteu, Paulo «perdeu tudo» (cf. Fl 3,8), e considerou como «lixo» (Fl 3,8) todas as vantagens que possuía, tudo o que, enquanto fariseu e judeu, era lucro para si (cf. Fl 3,3-6).

Com o monge, não pode ser de outra forma. Ele deve também deixar pai e mãe, irmãos e irmãs, além de renunciar à possibilidade de casar e ter filhos, casa e bens. Na sua profissão, o monge renuncia formalmente a todos os seus bens e a toda ocasião de possuir o que quer que seja (RB 58,24; 59,3-6). Ele é membro da comunidade, trabalha e dá o que ganha à comunidade e a comunidade supre a todas as suas legítimas necessidades (RB 33,5).

Existe ainda um nível mais profundo de renúncia. O monge deve levar uma vida de austeridade, de ascese cristã, de somente gloriar-se da cruz de Cristo (cf. Gl 6,14) e sempre «participar, pela paciência, dos sofrimentos de Cristo» (RB Pr 50). Deve «fazer-se alheio às coisas do mundo» (RB 4,20) e «não abraçar as delícias» (RB 4,12). Não lhe é permitido «assentar-se na companhia dos zombadores» nem tomar parte em suas diversões mundanas (cf. Jr 15,17). Trata-se de um estilo de vida que mantém o «mundo» fora do mosteiro, mas, ao mesmo tempo, é uma vida que permite, ou seja, obriga o monge a abraçar o gênero humano inteiro em seu coração – todos os grandes monges foram grandes amorosos da humanidade.

A renúncia permite ao monge caminhar com leveza: terá assim uma chance bem maior de chegar ao seu destino – a perfeição monástica ou união a Deus – e o alcançará com mais rapidez.

 

10. Procura de Deus e paz

A procura de Deus e a procura da paz estão intimamente ligadas. No Prólogo de sua Regra, São Bento cita o Salmo 33(34),13-14 e os conselhos do Salmista àqueles que querem a vida: «Guarda a tua língua de dizer o mal e que teus lábios não profiram a falsidade, afasta-te do mal e faze o bem, procura a paz e segue-a» (RB Pr 17). O texto é bastante ilustrativo do pensamente de São Bento. A única finalidade do monge é possuir a vida; é para obtê-la que ele procura a Deus, e para São Bento a procura da paz é condição necessária para essa procura de Deus. Cada monge deve ter a paz em seu coração, e assim toda a comunidade estará em paz.

A noção de paz está, por sua vez, interligada à noção de discreção na Regra. A «discreção» é um dos pontos fortes da Regra, que consiste em encontrar um equilíbrio que evite atitudes extremas. São Bento estabelece, na Regra, um maravilhoso equilíbrio. Ele considera o mosteiro como «uma escola de serviço do Senhor» (RB Pr 45) e, nesta escola, procura evitar tudo o que for «áspero e pesado» (RB Pr 46). No entanto, ao mesmo tempo, insiste para que haja nela «alguma coisa um pouco mais rigorosa», em matéria de disciplina, para «emenda dos vícios ou conservação da caridade» (RB Pr 47). A respeito da admissão de um recém-chegado, é dito que lhe «sejam feitas injúrias e dificuldades» (RB 58,3); e mais adiante: que «as coisas duras e ásperas» (RB 58,8), próprias da vida monástica, devem ser explicadas ao noviço.

O monge deve «castigar o corpo» (RB 4,11) e «não satisfazer os desejos da carne» (RB 4,59; 7,12.23). Porém, não deve desprezar o próprio corpo, pois só poderá, positivamente, labutar para alcançar a vida eterna se estiver vivendo no próprio corpo (cf. RB Pr 43). Só pode esperar que Deus o exalte se continuar a descer e subir aquela escada cujos dois lados representam «o corpo e a alma» (RB 7,9). O monge deve «amar o jejum» (RB 4,13). São Bento estabelece normas claras a respeito da medida da comida (RB 39) e da bebida (RB 40). Entretanto, tem consciência de que um trabalho mais pesado ou um clima rigoroso exijam suplementos, e os permite (RB 39,6; 40,5).

No intuito de manter um clima de paz no mosteiro, é necessário dedicar grande atenção a tudo e a todos. O Abade deve «dispor todas as coisas com prudência e justiça» (RB 3,6), não deve «perturbar o rebanho que lhe foi confiado», «dispondo alguma coisa injustamente», nem usando de um poder tirânico (RB 27,6; 63,2). Tudo no mosteiro deve ser organizado de tal maneira que nenhuma ocasião seja dada à murmuração, mesmo que justa (RB 41,5); «que haja o que os fortes desejam e que os fracos não fujam» (RB 64,19); «e, assim, todos os membros da comunidade estarão em paz» (RB 34,5).

Os conselhos dados ao Abade: «Não seja turbulento nem inquieto, não seja excessivo nem obstinado, nem ciumento nem muito desconfiado, pois nunca terá descanso» (RB 64,16), são igualmente válidos para todos os monges. Embora possam ocorrer «coisas duras e adversas» ou mesmo qualquer atitude de injustiça no caminho da obediência, é preciso acolher tudo isso «de ânimo sereno» (RB 7,35), «suportando tudo» (RB 7,36) sem murmurar quer no coração quer por palavras (cf. RB 5,17). Mesmo os que são severamente castigados por faltas graves cometidas na vida em comunidade (RB 27) ou os que acham que «excede a medida de suas forças» cumprir uma ordem que lhes foi dada (RB 68), devem ser ajudados a superar as situações difíceis. Impor um fardo demasiadamente pesado para carregar é sempre destrutivo para a conservação da paz (RB 48,24; 64,17-18).

São Bento propõe um modo de vida simples, possível para todos os seres humanos (RB Pr 3), nem muito pesado nem muito fácil. A única condição é que sejam pessoas que procurem e encontrem a Deus. Se realmente for assim, São Bento quer que sejam também pessoas que procurem e encontrem a paz e se empenhem por viver em paz – em paz com Deus, em paz com os outros, em paz consigo mesmas. Não é possível procurar e encontrar a Deus, pois «Deus é um Deus de paz» (1Cor 14,33), a não ser que «a paz de Cristo reine nos corações de cada um» (cf. Cl 3,15).

 

11. Procura de Deus e zelo bom

A noção de procura de Deus está também interligada com a de «zelo bom», a respeito do qual São Bento trata no capítulo 72 de sua Regra. É o zelo «que separa dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna» (RB 72,2). É o mesmo zelo que o noviço deve ter: «zelo pelo Ofício Divino, pela obediência e os opróbrios» (RB 58,7). É basicamente desse mesmo zelo por Deus que Elias estava possuído (cf. 1Rs 19,10.14). Se o noviço deve dar provas de zelo, é evidente que o monge deve ser zeloso a vida inteira. Geralmente, se começa com muito zelo e entusiasmo (RB 1,3), mas, infelizmente, muitos monges vão progressivamente se tornando tíbios, nem frios nem quentes (Ap 3,15-16).
É para exprimir a ideia de zelo que São Bento utiliza as imagens bíblicas de andar («ambulare»: RB 5,12; 7,3; 64,18) e correr («currere»: RB Pr 13.22.44.49; 27,5) quando fala da vida monástica. Essas imagens sugerem que o caminho monástico não pode ser empreendido sem entusiasmo; não basta um movimento devagar para prosseguir adiante. É necessário um movimento regular e constante, uma tensão voltada para o porvir, uma pressão dinâmica (cf. Fl 3,12-14) que ponha em ação, ao mesmo tempo, todas as energias que cada um dispõe e o recurso à graça de Deus, sobretudo quando se trata de situações particularmente difíceis (RB Pr 4.28.41; 4,50; 68,5).

Sendo zeloso, isto é, agindo «de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças», o monge demonstra que ama «o Senhor Deus de todo o coração, com toda a alma, com todas as forças» (RB 4,1). Visto que «deseja a vida eterna com toda a cobiça espiritual» (RB 4,46), ele deve fazer tudo com a mesma «cobiça espiritual», com a cobiça do coração.

A imagem da corrida implica igualmente a noção de uma sadia competição na vida monástica, tal como a percebemos na maneira como Pedro e João são em geral apresentados no quarto Evangelho, notadamente em Jo 20,1-10. Ambos correm até o túmulo, mas um corre mais rápido que o outro e chega lá primeiro (Jo 20,4). Pedro e João são apresentados no quarto Evangelho como ideal ou modelo do discípulo. Eles não são opostos um ao outro, mas se completam mutuamente. São Bento não apenas permite, mas estimula positivamente e até pede que haja esta sadia concorrência. O fato dele admitir que existem «fortes» (RB 64,19) e «fracos» (RB 27,6; 28,5; 40,3; 42,4; 48,24; 64,19) no seio de uma mesma comunidade, implica que uns «correm» mais rápido que outros. Logo que o sinal for ouvido, os monges «apressem-se mutuamente e antecipem-se no Ofício Divino» (RB 22,6); «rivalizem-se em prestar mútua obediência» (RB 72,6); e apressem-se «para a perfeição da vida monástica» (RB 73,2). Essa pressa é parte da principal preocupação do monge que é «apressar-se para a pátria celeste» (RB 73,8).

O maior obstáculo a esse zelo por Deus, zelo que é peculiar ao modo de vida monástico, é a ociosidade. São Bento a considera como «inimiga da alma» (RB 48,1), algo que o monge deve evitar a qualquer preço (RB 6,8; 48,18.24). Essa noção tem uma séria fundamentação bíblica. A narrativa contida em 2Sm 11 é suficiente para demonstrar o quanto a ociosidade pode ser destrutiva! A vida cotidiana de um monge que se torna perigosamente ocioso é muito semelhante à atitude do profeta Elias, descrita em 1Rs 19,4-6: esgotado pelo cansaço, à procura de uma sombra onde pudesse repousar, deitou-se e adormeceu, levantando-se apenas para comer! No contexto monástico, os conselhos de São Paulo aos tessalonicenses (2Ts 3,6-12) são particularmente relevantes. Eles evocam a preguiça física, intelectual e espiritual. Para evitar a preguiça física, São Bento prescreve o trabalho manual sério e produtivo; para evitar a preguiça intelectual, ele aconselha a «lectio divina». E, uma vez afastadas a preguiça física e intelectual, e sendo o monge fiel à sua vida de oração, o obstáculo da preguiça espiritual desaparece.

 

12. Procura de Deus e pureza de coração

Jesus diz em Mt 5,8: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus». Em sintonia com a inteira tradição monástica, São Bento também insiste sobre a «pureza de coração» (RB 20,3). A «pureza de coração» e a «pureza de devoção» são condições necessárias para procurar e encontrar a Deus, e para entrar em relação com ele na oração (RB 20,2-3). Deus só pode ser encontrado por quem o procura com um coração puro.

A «pureza de coração» está relacionada ao modo de viver. São Bento aconselha o monge a «guardar, com toda a pureza, a sua vida» (RB 49,2). Só pode haver «pureza de coração» se ele for interiormente purificado por Deus (Is 6,5-7; Ez 36,25; Sl 50[51]4. 9.12); se se esforçar em defender-se de todo pecado, sem hesitar em fugir das ocasiões de pecado, à semelhança de José (Gn 39,7-12). Como a «pureza de coração» está associada à «compunção das lágrimas» (RB 20,3), é necessário, para conserva-la, viver em permanente espírito de conversão. A «pureza de coração» requer que o monge se proteja de tudo o que pode manchar o coração (Mt 15,18-19), afastando todo ídolo, tudo o que é incompatível com a santidade de Deus (Ez 14, 4.7; 20,7-8.16.24; 33,25).

A «pureza de coração» está evidentemente ligada à simplicidade de coração, e a simplicidade de coração à simplicidade de vida. Por isso, São Bento propõe ao monge um estilo de vida simples. O monge deve «estar contente com o que há de mais vil e com a situação mais extrema» (RB 7,49). A «sobriedade» deve ser mantida em tudo e em todas as circunstâncias (cf. RB 39,10). O monge não deve preocupar-se «com a cor ou a qualidade» de suas vestes, mas estar contente com o que puder adquirir mais barato, no lugar onde mora (cf. RB 55,7). Nem o celeireiro (RB 31,1) nem monge algum devem ser «gulosos» (RB 4,36) ou «dados ao vinho» (RB 4,35; 40,6). «Exceder-se na comida» é uma atitude contrária à vida cristã (cf. RB 39,8) e, por conseguinte, à vida monástica. A vida monástica é um caminho de simplicidade para Deus; mas se essa simplicidade for perdida, a vida monástica deixa de ser um caminho para Deus.

 

13. Procura de Deus e humildade

A maneira como São Bento compreende a grande virtude cristã e monástica da humildade pode-se igualmente relacionar ao tema da procura de Deus. No intuito de explicar a noção de humildade, ele recorre à imagem de uma escada, a escada que Jacó viu em sonho (Gn 28,12), e sobre a qual Jesus também fala em João 1,51. A escada tem doze degraus. Degrau implica a noção de subir e descer. Para São Bento, esses dois movimentos são inseparáveis. É descendo pela humildade que se sobe. É humilhando-se a si mesmo que se é exaltado, elevado por Deus (RB 7,8).

A humildade é um modo de tomar parte na «kénosis» de Jesus. Aqui ainda, o pensamento de São Bento está próximo do pensamento de São João. Ao contrário de São Paulo (cf. Fl 2,6-11) e de outros autores do Novo Testamento (cf. Lc 24,26), São João considera a vida de Jesus como um processo simultâneo de despojamento de si mesmo, de humilhação e de exaltação. Sua vida na carne foi uma existência na glória (Jo 1,14; 2,11) e sua morte na cruz, sua glorificação suprema (Jo 3,14; 7,37-39; 8,28; 12,32). Acrescentemos a isso as palavras de São João Batista em Jo 3,30: «É necessário que ele cresça e que eu diminua». O monge se preocupa em tornar-se menos e menos, em não cessar de diminuir, enquanto Cristo cresce mais e mais nele. O primeiro movimento é o do despojamento, do abaixamento; e o segundo, da glorificação, da elevação. Esses dois movimentos não ocorrem um após o outro, mas ao mesmo tempo: na medida em que o monge se esvazia a si próprio, ele se torna repleto de Cristo. Conforme o Prólogo da Regra de São Bento, o programa único da vida monástica é participar da paixão e morte de Jesus, para estar em condições de participar também de sua glória (cf. RB Pr 50). Ambas essas coisas acontecem simultaneamente. Procurar a Deus ou procurar a Cristo é ceder-lhe o lugar. Quando o monge consegue se livrar do amor de si próprio, pode então dizer como São Paulo: «Já não sou mais eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20).

Ao concluir, deve-se constatar o seguinte: Deus está, sobremaneira, à procura do monge (Ez 34,11-16; Sl 118[119],176; Lc 15,4-6.8-9; 24,13-15; Jo 9,35; 21,2-4; RB Pr 14), enquanto o monge nunca poderá estar à procura de Deus. O monge é capaz de responder a Deus, não por sua própria iniciativa, mas porque é procurado por Deus. Entretanto, é dever do monge entregar-se à procura de Deus com toda a sinceridade.

*Dom John Kurichianil, OSB
é Abade da Abadia de Saint Thomas, Kappadu (Índia)

(Traduzido do inglês por Maria Teresa Donaldson)

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